Ambiente Jurídico
O ano de 2024 foi verdadeiramente marcante para a agenda ESG (Environmental, Social and Governance), tanto em nível nacional como internacional. Diversos fatores apontam para um avanço considerável no ambiente regulatório quanto a regras, padrões e requisitos voltados ao gerenciamento e controle dos riscos e impactos ambientais, climáticos, sociais e de governança corporativa em diversos setores econômicos relevantes.
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Sinais de que o ano que se encerra traz maior maturidade no tema, mormente na arquitetura normativa e institucional, são inúmeros. O primeiro e notável exemplo está nas impactantes regras e diretivas de sustentabilidade e padrões ESG publicadas pela União Europeia[1] e que já estão causando estruturais efeitos regulatórios, econômicos e comerciais para o mercado brasileiro, em especial no setor agroindustrial.
Soma-se ainda as regulamentações sobre relatórios ESG lançadas pela CVM[2] e CFC[3], em conjunto com a conclusão, ainda que temporária, do Acordo União Europeia-Mercosul e suas cláusulas comerciais de sustentabilidade. Tem-se ainda a instituição do tão esperado Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), o chamado Mercado Regulado de Carbono do Brasil[4], que se junta ao decreto federal que inseriu direitos humanos, trabalhistas e ambientais no rol de elementos obrigatórios na avaliação e implementação dos programas de integridade e compliance no âmbito das licitações públicas federais de grande vulto[5]. Houve, ainda, a criação formal de Frente Parlamentar ESG no Congresso Nacional[6].
Não por acaso se verifica, ao menos desde o pós-pandemia, um conjunto de reorientações com significativas mudanças no tratamento da devida densidade regulatória e normativa de estruturas, mecanismos e controles de cunho ESG nos principais mercados e países do mundo. A pauta torna-se cada vez mais decisiva à concepção e ao desenvolvimento de atividades econômicas, projetos e empreendimentos, principalmente no âmbito das relações comerciais e financeiras, nacionais ou internacionais.
Agenda de sustentabilidade vira prioridade
Trata-se de um momento no qual a agenda de sustentabilidade corporativa em sentido amplo passa cada vez mais a desempenhar função-chave nas estratégias de negócios em empresas e companhias, tornando-se verdadeira condição de operação em diversos setores da economia, assim como requisito para o acesso a crédito e para o ingresso em mercados.
Nesse diapasão, um setor-chave na difusão e normatização da agenda ESG tem sido o da regulação financeira. E o ano de 2024 também trouxe novos avanços neste âmbito no Brasil. Isso porque o Conselho Monetário Nacional (CMN), principal órgão do Sistema Financeiro Nacional, e com competência por expedir normas e diretrizes gerais para bom funcionamento deste sistema no país, publicou no dia 23 de dezembro de 2024 a Resolução CMN nº 5.193, com a qual alterou as normas da Seção 9 (Impedimentos Sociais, Ambientais e Climáticos) do Capítulo 2 (Condições Básicas) do Manual de Crédito Rural (MCR), trazendo importantes inovações em termos de requisitos nestas modalidades de operações e concessões de crédito no Brasil.
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Segundo o Bacen, o MCR é um documento que reúne as normas e regras para o crédito rural, aprovadas pelo CMN e divulgadas pelo Banco Central do Brasil (Bacen). O MCR é de aplicação obrigatória para os beneficiários e instituições financeiras que operam no Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR). O SNCR foi instituído pela Lei n° 4.829/1965, a qual institucionalizou o crédito rural, como parte de um processo de modernização da agropecuária nacional.
Dentro desse sistema, o crédito rural representa um tipo de empréstimo que serve para financiar as operações no campo, como o plantio, a compra de insumos, a colheita, a comercialização e a industrialização dos produtos. Existem diferentes linhas de crédito, cada uma com um objetivo específico.
Controle maior em biomas sensíveis
Como se sabe, as atividades agropecuárias financiadas e desenvolvidas mediante o crédito rural, quando inseridas ou relacionadas a biomas considerados mais sensíveis no Brasil, a exemplo da Amazônia e do Cerrado, exigem sistêmico controle por parte dos órgãos e entidades públicas competentes, atuação essa que muitas vezes não se mostra suficiente e eficaz, sobretudo em termos de danos socioambientais. Ocorre que, na linha do que exalta a agenda ESG de responsabilidade pública e privada, todos os atores, públicos ou privados, que estejam envolvidos, direta ou indiretamente, com o controle da conformidade e regularidade de atividades, projetos ou empreendimentos, e de seus impactos, devem contribuir para que se cumpram todos os padrões e regras de interesse público, entre as quais, as políticas e normas de meio ambiente, clima, direitos humanos e trabalhistas.
Nessa arena de stakeholders (partes interessadas) do empreendimento mantido por meio de crédito rural, as instituições financeiras e bancos em geral são personagem-chave para a efetividade dessas políticas e normas em temas sociais, ambientais e climáticos. Aquele que financia, subvenciona ou mantém em termos econômicos tais empreendimentos também possui o dever de prevenir e controlar sua regularidade, dentro do que cabe a ele fazer.
Observando esse contexto é que a mencionada Resolução CMN nº 5.193/2024 trouxe importantes alterações no que diz respeito aos requisitos e impedimentos à concessão do crédito rural. Com isso, as regras ESG na concessão de crédito rural foram modificadas e direcionadas da seguinte maneira:
- Registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR): Propriedades rurais devem estar registradas e não suspensas e/ou canceladas no CAR como condição de elegibilidade ao crédito rural, com exceções previstas nos itens MCR 2-1-12 a 15, dentre os quais está a condicionante a Zoneamentos e outras regras específicas;
- Áreas Especialmente Protegidas: b.1) Unidades de Conservação: Propriedades dentro de Unidades de Conservação apenas poderão ter acesso ao crédito mediante a conformidade da atividade ou empreendimento com o plano de manejo e seus padrões de uso e ocupação; b.2) Territórios Quilombolas: Vedação de crédito para propriedades tituladas em comunidades quilombolas, permissão apenas aos proponentes integrantes da comunidade quilombola; b.3) Terras Indígenas: Vedação de crédito para propriedades tituladas em terras indígenas, permissão somente aos proponentes integrantes das comunidades indígenas relacionadas;
- Embargos por questões ambientais: Propriedades embargadas, em nível federal ou estadual, por desmatamento ilegal não têm acesso ao crédito, salvo em casos específicos, como: c.1) Financiamento destinado à recuperação de vegetação nativa, sob a condição de documentos e requisitos próprios; e c.2) Contratos até 30 de junho de 2027, mediante condições específicas, como isolamento e recuperação da área embargada;
- Florestas Públicas: Vedação de crédito rural para empreendimento em propriedade inseridas em Florestas Públicas Tipo B (“Não Destinadas”) integrantes do Cadastro Nacional de Florestas Públicas (CNFP), do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), salvo para propriedades tituladas ou menores que 15 (quinze) módulos fiscais, não inserida na área florestal;
- Desmatamento: A partir de 2 de janeiro de 2026, instituições financeiras devem constatar se ocorreu supressão de vegetação após a data de 31 de julho de 2019. O crédito apenas será concedido mediante comprovação de autorização, recuperação em andamento ou laudo técnico que ateste ausência de desmatamento;
- Questões Trabalhistas e Trabalho Análogo à Escravidão: Vedação de crédito rural a pessoas físicas ou jurídicas, como empregadores, que estejam no Cadastro de Empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), com decisão administrativa final;
- Desclassificação do Crédito Rural: Os contratos firmados devem possuir critério de desclassificação em caso de descumprimento das obrigações ambientais durante o período de vigência do respectivo financiamento.
- Com efeito, a aludida Resolução ainda prevê expressamente que as instituições financeiras sujeitas à normativa terão de avaliar “a caracterização de empreendimentos com restrições de acesso ao crédito rural em razão de dispositivos legais ou infralegais atinentes a questões sociais, ambientais e climáticas”, possibilitando, portanto, uma análise discricionária do financiador à luz de normas e regulamentos nestes temas.
Papel de bancos em prevenção de danos ambientais
Como é possível perceber, a Resolução nº 5.193/2024, em conjunto com outras normativas do CMN e do Bacen, a exemplo da Resolução CMN nº 5.185/2024, ligada à obrigatoriedade da publicação de relatório de informações financeiras relacionadas à sustentabilidade, sublinha a importância do papel dos bancos e demais instituições financeiras, públicas ou privadas, no controle e dever de prevenção e mitigação dos riscos, impactos e potenciais danos ambientais, climáticos e sociais que possam advir das atividades, projetos, empreendimentos ou investimentos a serem financiados ou custeados, responsabilidade atinente ao dever fiduciário bancário.
Por evidente, não se imagina que o banco ou a instituição financeira faça as vezes do órgão ambiental, até porque não é essa a sua função. O que se espera, sobretudo em tempos de avanços na agenda ESG, é que os deveres de cautela sejam efetivamente observados no momento da concessão do crédito, do financiamento ou do fomento de crédito rural, notadamente quando envolver biomas e ecossistemas considerados mais sensíveis e áreas de especial proteção. A direção do financiamento não poderá ser outra, senão a da conformidade e integridade com todos os impactos e aspectos climáticos, socioambientais e humanos que uma atividade em área rural cause ou possa vir a causar.
Em termos de responsabilidade ambiental, que é pauta-chave na agenda ESG, relevante é o papel daqueles que financiam e/ou suportam economicamente a operação e a realização de determinada atividade, empreendimento, projeto ou investimento com riscos ou impactos significativos ou capazes de causar danos ambientais e climáticos. Em sentido geral, essa responsabilidade já estaria de algum modo prevista pela Lei n.º 6.938/1981, que dispõe sobre Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), no seu artigo 12, quando destacou que o financiamento e o incentivo econômico a atividades, empreendimentos ou projetos, públicos ou privados, estarão condicionados ao licenciamento, na forma da lei, e ao cumprimento das normas, dos critérios e dos padrões expedidos pelo Conama.
Diante disso, e consideradas todas as inovações instituídas em 2024, no Brasil e no mundo, a agenda ESG se consolida cada vez mais como fator decisivo para a operação, desenvolvimento e, especialmente, financiamento de atividades econômicas, como no caso do crédito rural que, com as exigências trazidas pelo CMN, passou a sintonizar com ainda mais força a regulação financeira brasileira aos especiais propósitos da sustentabilidade. É evidente que o setor financeiro, como o dínamo da economia nacional e internacional, possui uma função imprescindível na transição para um modelo de desenvolvimento que respeite os limites ambientais e climáticos do planeta, e que também busque promover justiça social.
[1] Neste sentido, destacam-se: a) Diretiva nº 1.760/2024, da Corporate Sustainability Due Diligence Directive – CS3D; b) Diretiva nº 2.464/2022, da Corporate Sustainability Reporting Directive – CSRD; c) Regulamento nº 1.115/2023, da European Union Deforestation Regulation – EUDR, entre outras.
[2] Resolução CVM nº 217/2024 que aprovou o Pronunciamento Técnico CBPS nº 01 – Requisitos Gerais para Divulgação de Informações Financeiras relacionadas à Sustentabilidade, emitido pelo Comitê Brasileiro de Pronunciamentos de Sustentabilidade – CBPS, e Resolução CVM nº 218/2024, que aprovou o Pronunciamento Técnico CBPS nº 02 – Divulgações Relacionadas ao Clima, emitido pelo Comitê Brasileiro de Sustentabilidade – CBPS.
[3] Norma Brasileira de Contabilidade NBC TDS 1, de 17 de outubro de 2024, que aprovou a NBC TDS 01 – Requisitos Gerais para Divulgação de Informações Financeiras Relacionadas à Sustentabilidade, e Norma Brasileira de Contabilidade, NBC TDS 2, de 17 de outubro de 2024, que aprovou a NBC TDS 02 – Divulgações Relacionadas ao Clima.
[4] Lei nº 15.042, de 11 de dezembro de 2024. Institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L15042.htm
[5] Decreto Federal nº 12.304, de 9 de dezembro de 2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/decreto/D12304.htm
[6] Frente Parlamentar ESG na Prática é lançada em Brasília. Poder 360. Disponível em: https://www.poder360.com.br/poder-congresso/frente-parlamentar-esg-na-pratica-e-lancada-em-brasilia/