“Paraíso das águas”. É assim que Alagoas se vende ao Brasil e ao mundo. Mas por trás do azul cristalino das campanhas de turismo, a realidade por aqui é um mar doente, que substitui o cuidado por contaminação. Esse problema é grave e pode afetar a economia do estado, o ecossistema e a saúde de quem vai às praias de cidades como Maceió, Barra de São Miguel e Maragogi.
Para se ter ideia da dimensão da gravidade, a Agência Tatu analisou 112 boletins de balneabilidade do Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA/AL) entre 2019 e 2024, reunindo mais de 7 mil registros sobre a qualidade da água nas praias alagoanas. Confira aqui!
Segundo o levantamento, o ponto mais crítico é a foz do Rio Niquim, na Barra de São Miguel, imprópria em 92% das análises. Em seguida vêm a foz do Rio Persinunga (90%) e a do Rio Salgado (70%), ambas em Maragogi. Em Maceió, dois trechos da Praia da Avenida tiveram mais de 65% dos boletins negativos.
Os locais mais poluídos ficam próximos à foz de rios. A contaminação é maior entre maio e agosto, com pico em junho (19,6%). Já novembro teve o menor índice, com 8,5% dos trechos impróprios. Por outro lado, 23 praias permaneceram próprias para banho em todas as análises do período.
De acordo com o IMA, o que caracteriza uma praia imprópria para banho é a presença de coliformes fecais, incidência elevada ou anormal, na região, de enfermidades transmissíveis por via hídrica e indicação das autoridades sanitárias.
Além disso, também se considera a presença de resíduos ou despejos, sólidos ou líquidos, inclusive esgotos sanitários, óleos, graxas e outras substâncias, capazes de oferecer riscos à saúde ou tornar desagradáveis a recreação, entre outros critérios.
Construção desordenada e plano diretor defasado ameaçam litoral
Sem um plano diretor atualizado, a construção civil pressiona a rede de saneamento da capital alagoana, o que explica a quantidade de esgoto na orla de Maceió. Em entrevista ao Cada Minuto, o economista e professor da Ufal, Chico Rosário, destacou que Maceió possui uma legislação ambiental que raramente é cumprida.
“[O plano diretor] foi atualizado minimamente em 2005 e de lá para cá não se fez mais nada e a cidade já cresceu em termos de construção muito. Isso tem pressão na rede de saneamento, na construção, nas áreas costeiras”, destaca.
Para o especialista, “sem regulação, sem legislação ambiental que seja cumprida, que a legislação ambiental existe, só que às vezes se dá liberações, alvarás e a gente não sabe, não é feito, acredito eu, estudo de impacto porque logo depois que se constrói já começa a ter os problemas”, disse.
A expansão desordenada da construção civil, especialmente de espigões à beira-mar, é um problema antigo em Maceió. Em 2007, por exemplo, a Ordem dos Advogados do Brasil em Alagoas (OAB/AL) tentou embargar a construção de três torres residenciais em um trecho da praia de Guaxuma, no Litoral Norte, mas a iniciativa não obteve êxito.
Desde então, os prédios altos se multiplicaram, alterando a paisagem natural e intensificando impactos ambientais. A ocupação desordenada do litoral tem contribuído para a erosão costeira, a destruição de ecossistemas marinhos e a contaminação das águas, mostrando que o problema vai muito além da estética urbana.
Diante desse cenário, a Justiça validou recentemente uma recomendação do Ministério Público de Alagoas (MPAL) e suspendeu o alvará de um novo empreendimento em Guaxuma, conhecido como “espigão”.
A decisão exige a realização de um Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) antes de qualquer autorização para construção, representando um importante precedente em defesa do meio ambiente e do ordenamento urbano da capital.
O custo ambiental
Enquanto prédios são construídos, esgotos são despejados no mar e o lixo é jogado na praia, quem arca com o custo é a fauna e a flora alagoana. Para o biólogo Anderson Carnaúba, a região contaminada corre um sério risco de desequilíbrio ecológico.
O especialista explica que o acúmulo de lixo nas águas favorece o processo de eutrofização — um fenômeno causado pelo excesso de nutrientes, como fósforo e nitrogênio, provenientes principalmente do esgoto doméstico e do uso de fertilizantes agrícolas.
Esse acúmulo estimula a proliferação exagerada de algas e cianobactérias, que formam uma camada densa na superfície e bloqueiam a passagem da luz solar. Com isso, as plantas subaquáticas morrem, e o nível de oxigênio na água cai drasticamente, comprometendo a sobrevivência de peixes e outros organismos aquáticos.
“Além da eutrofização, há a bioacumulação: poluentes como metais pesados são absorvidos pelo plâncton — base da cadeia alimentar — e se acumulam em animais maiores. Quando humanos consomem esses peixes, também ingerem esses metais”, explicou.
Além disso, o lixo jogado incorretamente no mar atrapalha a alimentação e pode levar à morte de animais como tartarugas marinhas.
“Os principais impactos para a fauna estão relacionados, sobretudo, à ingestão de detritos e de plásticos. Por exemplo, as tartarugas marinhas acabam enfrentando sérios problemas de saúde ao ingerirem sacolas plásticas, que confundem com águas-vivas”, explicou Anderson.
Os ecossistemas vizinhos, como manguezais e recifes de coral, que são berçários e zonas de alimentação de animais, não saem ilesos.
A Área de Proteção Ambiental (APA) dos corais é sensível à poluição de esgotos. Além disso, o complexo estuarino-lagunar do Mundaú-Manguaba tem uma poluição intensa porque os manguezais recebem e retém uma grande quantidade de poluentes químicos.
“Por exemplo, os moluscos que ali vivem, como a crassostrea, como é um molusco filtrador, ela começa a filtrar a água e absorver esses metais pesados que estão em suspensão. Fora a contaminação dos crustáceos também, né? Então tem tantos moluscos e crustáceos como os caranguejos e os sururus”, falou o biólogo.
Os danos aos ecossistemas vão além da perda de biodiversidade — eles têm impacto direto sobre a economia local. Manguezais contaminados e recifes de coral degradados comprometem o turismo, que depende de praias limpas, águas cristalinas e de uma vida marinha equilibrada para se manter.
Poluição nas praias ameaça turismo e empregos
Em um estado onde o turismo é um dos pilares da economia, a poluição e a perda de balneabilidade das praias representam uma ameaça direta à geração de renda e empregos. O avanço da contaminação nas praias e lagoas de Alagoas pode comprometer o turismo de sol e mar, base importante da economia estadual.
O alerta é do economista e professor da Ufal, Francisco Rosário, que vê o setor como uma “missão de desenvolvimento” para o estado, mas adverte que a falta de planejamento urbano e de saneamento básico ameaça esse potencial.
“O turismo de Alagoas é sol e mar. O mar, se não for bem cuidado, não dura mais cinco anos”, afirma. Segundo ele, o setor depende de políticas integradas de infraestrutura, preservação ambiental e regulação urbana. “Sem drenagem adequada, saneamento, controle de construções e manutenção da vegetação costeira, o turismo se autodestrói”, completou.
Rosário destaca que os impactos já são sentidos, especialmente em Maceió, onde o plano diretor é defasado desde a década de 1990. A expansão imobiliária desordenada compromete áreas como a Praia da Avenida e a Lagoa Mundaú, que sofrem com esgoto despejado diretamente nas águas.
“Se as praias ficarem impróprias para banho, turistas podem adoecer e evitar a cidade. Turismo é serviço de experiência, e a primeira impressão é a que fica”, explica. A consequência é a queda no fluxo turístico e o enfraquecimento de hotéis, restaurantes, ambulantes e comércio local.
O professor cita o centro de Maceió como exemplo de potencial subaproveitado. “Se houvesse uma revitalização de fato, isso aqueceria o comércio e geraria empregos”, afirmou. O mesmo vale para as praias urbanas: quando o banho não é seguro, o turista se desloca, prejudicando a economia local.
Embora não existam estimativas oficiais, Rosário alerta que o custo econômico da falta de saneamento será alto. “Alagoas vive um momento de crescimento turístico, mas é uma bomba-relógio. Um turista decepcionado dificilmente retorna”, acrescenta.
Os desafios para salvar as praias alagoanas
Em meio à crise política e ambiental que cercam a questão das praias em Alagoas, algumas iniciativas buscam reduzir os danos, como é o caso do Coletivo Praia Limpa.
Ao Cada Minuto, a organizadora do coletivo, Mayara Damasceno, explicou que as ações têm o objetivo de conscientizar a população sobre a importância da preservação ambiental. Ela ressaltou que o grupo também reivindica políticas públicas mais rigorosas e eficazes, uma vez que a responsabilidade pela fiscalização não pode recair apenas sobre a sociedade civil.
“A gente precisa desse apoio do governo, dessas políticas públicas, para que essa parte da educação ambiental ela alcance outros níveis. Então, como coletivo, a gente acredita que é fundamental que seja investido em expansão desse sistema de esgoto, de coleta de tratamento de esgoto e manutenção do que já existe”, disse.
Quanto à recuperação ambiental, o biólogo ouvido pela reportagem disse ser necessária uma abordagem em múltiplos níveis, começando pelo saneamento.
“O saneamento básico cessaria essa poluição. Então toda a cidade de Maceió e em torno deveria passar por um processo de ampliação e modernização da rede coleta de tratamento de esgoto. E esse esgoto seria tratado e posteriormente liberado para a praia”, disse Anderson.
De acordo com ele, os outros passos seriam:
- Recuperação dos manguezais: os manguezais deveriam passar por um processo de monitoramento, remoção de lixo e entulho da região e replantio de regiões degradadas;
- Restauração dos recifes de corais: transplante de corais e ampliação da APA dos corais;
- Medidas complementares de gestão: educação ambiental e fiscalização;
- Implementação de um programa de monitoramento de qualidade das águas do mar e dos rios, principalmente o Rio Jacarecica e o Rio Salgadinho;
- Drenagem urbana: melhorar a rede de drenagem pluvial para evitar o carregamento excessivo de lixo e areia diretamente lá na praia.
Caminhos possíveis: políticas públicas e regulação
Para equilibrar preservação ambiental e desenvolvimento econômico, o economista defende um conjunto de políticas públicas e incentivos. Rosário ressalta que, sem ações coordenadas, o crescimento sustentável do turismo e da economia local fica comprometido.
Em seu novo livro, Missão Alagoas: políticas públicas e turismo sustentável — escrito em coautoria com a professora Luciana Santana, do Instituto de Ciências Sociais da Ufal —, Chico Rosário propõe medidas práticas.
Entre as propostas estão a destinação de parte do ICMS para projetos de revitalização urbana e cultural, a reestruturação dos órgãos ambientais e o fortalecimento da fiscalização, de modo a assegurar que o uso do litoral e das áreas urbanas ocorra de forma planejada e sustentável.
“O turismo é uma atividade predatória por natureza. Se não for regulado, ele destrói exatamente aquilo que o torna atrativo”, pontuou Rosário. Ele cita São Miguel dos Milagres como exemplo do risco. “Estão destruindo os coqueirais, que eram a beleza do local, para construir loteamentos. É o turismo se autodestruindo.”
Entre as medidas urgentes, ele destaca a necessidade de planos diretores atualizados, leis que limitem a especulação imobiliária na orla e um ordenamento do uso econômico das praias. “Se conseguirmos apenas regular e planejar o uso do litoral, já será um grande avanço”, conclui o economista.
IMA monitora balneabilidade das praias e alerta para riscos de poluição
O Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA/AL) informou que realiza análises semanais da qualidade da água das praias de Maceió e de todo o litoral do estado. Os resultados são divulgados por meio de relatórios de balneabilidade que avaliam tanto as áreas marítimas quanto as lagunas.
Segundo o órgão, o objetivo é garantir que moradores e turistas tenham acesso a informações atualizadas sobre as condições das praias. “O IMA/AL realiza análises semanais, assim como a divulgação do relatório de balneabilidade das lagunas e do mar.”
O instituto explica que esses relatórios indicam quais trechos estão próprios ou impróprios para banho, seguindo critérios estabelecidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), por meio da Resolução nº 274/2000.
Ainda segundo o órgão estadual, as análises periódicas permitem identificar áreas críticas e orientar novas ações de fiscalização. “Nosso trabalho de fiscalização é constante, inclusive as ações de monitoramento da balneabilidade são indicativos que dão subsídio para novas ações de fiscalização.”
Para garantir que as informações cheguem ao público, o IMA afirma que divulga semanalmente os relatórios no site oficial, no aplicativo Nossa Praia e também durante ações de educação ambiental.
Além disso, há sinalização física em diversos pontos do litoral. “O IMA/AL sinaliza as praias de Maceió com a inserção de QR Codes, permitindo que as pessoas acessem rapidamente informações atualizadas sobre a qualidade das águas”, explicou o órgão.
Medidas emergenciais e parcerias
Em casos de contaminação grave, o IMA realiza fiscalizações no local para identificar a origem do problema e orientar a população sobre os cuidados necessários.
“Quando ocorre uma contaminação grave, o instituto faz a fiscalização na região para localizar a fonte poluidora e determinar medidas corretivas”, detalhou o órgão. Se a origem for identificada, o responsável é autuado administrativamente.
O IMA também destaca que atua em parceria com a Prefeitura de Maceió e com a BRK Ambiental, concessionária responsável pelo saneamento na capital, cobrando medidas corretivas e melhorias estruturais.
“O IMA/AL dá suporte através de suas ações de monitoramento e fiscalização, cobrando dos entes responsáveis as ações corretivas para melhorias estruturais necessárias”, afirmou.
Apesar da atuação constante, o instituto reforça que o combate à poluição depende também do comportamento da população e da ação efetiva do poder público.
“Sempre realizamos ações de monitoramento e fiscalização para que nossas praias estejam próprias para banho. Porém, cabe à população fazer o descarte correto dos resíduos e ao poder público atuar contra o despejo irregular de efluentes”, destacou o órgão estadual.
Plano Diretor de Maceió entra na reta final antes de seguir à Câmara
Em nota à imprensa, divulgada no último dia 15 de outubro, a Prefeitura de Maceió informou que o Plano Diretor passa pela fase final de ajustes técnicos no texto da lei, etapa essencial para garantir a consistência das diretrizes propostas. Em seguida, o documento será enviado à Câmara Municipal para apreciação e debate pelos vereadores. Ainda não há previsão de envio.
*Estagiária sob supervisão da editoria
**Esta reportagem usa áudios do podcast “A Última Onda”, que pode ser conferido neste link!
***Colaboraram com a reportagem Léh Nasctos, Malu Damásio e Eduardo Filipe
Foto de capa: Émile Valões/Ascom Semtel
