É um mistério: nenhuma outra região do mundo tem uma memória tão forte do trágico. E nenhuma outra região tem tão pouca imaginação para o desastre.

Falo da Europa, do seu passado, do seu presente —e talvez não haja mistério algum: o século 20 foi tão brutal que as asas da imaginação foram amputadas.

Nos últimos dias, caças russos violaram o espaço aéreo da Estônia, uma ex-república soviética e atual membro da Otan, a Organização do Tratado do Atlântico Norte. A Europa respondeu com a retórica habitual, mas sem nenhuma ação consequente.

Os Estados Unidos também.

Dez anos atrás, quando um avião de guerra russo invadiu o espaço aéreo da Turquia, o governo de Ancara, depois dos avisos de praxe, abateu a aeronave. Putin não voltou a repetir o abuso.

A pergunta é legítima: o temor da Europa e dos Estados Unidos é um caminho para a paz —ou, pelo contrário, serve de incentivo para novas agressões vindas do Kremlin?

O cientista político alemão Carlo Masala responde com seu “If Russia Wins: A Scenario”, da editora Atlantic Books. Não é um ensaio acadêmico. É um livro de ficção, fortemente ancorado em pesquisa rigorosa, que imagina o que será do mundo se a Rússia vencer na Ucrânia.

As primeiras páginas parecem roteiro de cinema. Estamos em 2028. Duas brigadas russas invadem a cidade de Narva e tomam de assalto a ilha de Hiiumaa. Você sabe onde ficam esses territórios? Eu ajudo: na Estônia.

Para entender essa audácia, Masala recua três anos, ou seja, até hoje. A Ucrânia assina um cessar-fogo com a Rússia e perde 20% de seu território. Os Estados Unidos se cansam de bancar a guerra. A Europa, apesar das boas intenções, não consegue substituir o apoio americano.

A vitória na Ucrânia empodera a Rússia e joga o país de Volodimir Zelenski no caos político e econômico. Mas a paz, ou a ilusão de paz, permite aos europeus respirar aliviados.

Será mesmo necessário investir em defesa quando a Rússia até mudou de liderança?

Os países bálticos protestam contra o novo sonambulismo dos parceiros. A Polônia também. Ao mesmo tempo, a Rússia reconstitui as suas Forças Armadas, contando com o apoio da China e da Índia.

A tentação cresce em Moscou: depois do sucesso na Ucrânia, por que não a Estônia? Não haverá reconstituição do império russo sem os países bálticos.

Carlo Masala, no melhor momento do livro, põe o leitor dentro das decisões do Kremlin. Há receios. A Estônia é membro da Otan e o quinto artigo da Aliança Atlântica continua valendo: o ataque a um membro será considerado um ataque a todos.

Mas é então que o diretor dos serviços secretos russos racionaliza a questão. Os europeus não estão militarmente preparados. Washington, com certeza, não vai arriscar uma guerra por causa de um país minúsculo. E o medo da escalada nuclear, que funcionou na Ucrânia, funciona na Estônia.

O modelo a seguir, conclui o personagem, é a remilitarização da Renânia em 1936 pelos nazistas. Hitler mandou avançar 30 mil tropas para a região, testando o Tratado de Versalhes. Ninguém deu um pio.

Moscou sabia do que falava: quando a invasão da Estônia é consumada (para proteger os falantes de russo em Narva contra os alegados abusos do governo estoniano, claro), a Otan fica paralisada. Os Estados Unidos e a França impedem qualquer resposta conjunta.

Moscou festeja e até anuncia a reunificação com a Belarus. O futuro será radioso.

O livro de Carlo Masala é um exercício especulativo que só o futuro poderá comprovar. Mas a ficção apresentada é convincente porque se alimenta de fatos bem reais.

A cegueira das lideranças europeias é um deles. O fascínio de Trump por autocratas é outro. A fadiga dos europeus com a guerra na Ucrânia reforça a vontade de paz, de qualquer paz, a qualquer preço, independentemente das consequências para o futuro.

E a coerção nuclear de Moscou se impôs de tal forma na narrativa que os membros da Otan até se esquecem de que também há dissuasão nuclear do lado deles. A derrota psicológica é a antessala da derrota militar.

O escritor Henry James declarou um dia que sua escrita dependia da “imaginação do desastre” —a capacidade e a responsabilidade do romancista para explorar os limites da vida, mesmo em seus aspetos mais “ferozes” e “sinistros”.

Eis a prova de que os males do nosso tempo são estéticos, antes de serem morais: se os líderes da Europa tivessem lido um pouco mais, a ficção de Carlo Masala seria recebida como reportagem.


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By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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