O Brasil vive uma das transições energéticas mais limpas do mundo. Mais de 84% da nossa matriz elétrica já vem de fontes renováveis, segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), que registrou em 2024 uma marca histórica de 200 GW de capacidade instalada no país, sendo 84,25% provenientes de fontes renováveis ​​como hidrelétrica, eólica, solar e biomassa.

É um feito admirável. Mas, por trás dessa conquista, existe um desequilíbrio em discussão no setor elétrico. Estamos gerando muita energia, mas entregando potência de forma limitada.

Pode parecer um detalhe técnico, mas é o ponto central do futuro elétrico brasileiro. Energia é o volume que produzimos ao longo do tempo. Potência é a capacidade de disponibilizá-la no momento em que o sistema precisa. E essa diferença vai definir quem, de fato, sustentará a transição energética nos próximos anos.

Hoje, há uma sobra de energia no setor, principalmente vinda da geração solar e eólica. A energia fotovoltaica já é a segunda maior fonte elétrica do Brasil, com cerca de 26% da matriz, segundo o Operador Nacional do Sistema (ONS).

Mas essa energia está disponível apenas durante o dia. Quando o sol se põe, ela simplesmente é alguma, e o consumo, claro, não desaparece com o anoitecer.

Esse é o dilema que temos pela frente, temos energia renovável, mas falta estabilidade. O sistema elétrico precisa de fontes capazes de responder com rapidez, ligando e desligando conforme a necessidade. É o que chamamos de “entregar potência”

É exatamente aí que vejo a geração a partir da biomassa como soluções estratégicas.

As usinas de cana, bagaço e outros resíduos agrícolas têm uma característica que o sol e o vento não possuem. Elas podem ser controladas. Conseguem gerar energia sob demanda, garantindo fornecimento suficiente quando as fontes intermitentes não estiverem disponíveis

De acordo com o ONS, a biomassa responde por cerca de 6,2% da capacidade instalada nacional, sendo a quarta maior fonte renovável em operação no país. Em 2023, essa geração atingiu 3.218 megawatts médios, um recorde histórico, segundo levantamento do Ministério de Minas e Energia (MME).

Por isso, acredito que a biomassa pode, e deve, ser protagonista na entrega de energia firme e renovável.

O desafio é que, historicamente, as usinas de biomassa operam de forma contínua, quase “plana” ao longo do dia. Para cumprir o papel de fonte flexível, é preciso mudar a forma de operar. Gerar quando o ONS aciona, desligue quando a rede estiver suprida, e assim por diante.

Essa transformação não é tecnológica, mas tem desdobramentos operacionais e culturais.

Um preconceito energético que ainda precisamos superar

Mesmo com todo esse potencial, a biomassa ainda enfrenta resistência. O leilão de reserva de capacidade (LRCAP) programado para 2026, que vai remunerar as fontes capazes de garantir potência ao sistema, não incluídas na biomassa.

Vejo isso como uma visão limitada, que ainda não enxerga o papel estratégico da fonte.

O setor público continua focado em volume de energia, não em flexibilidade. E as propostas oficiais da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) no Plano Decenal de Expansão de Energia 2033 mostram um crescimento modesto da bioeletricidade até 2030 (EPE, PDE 2033).

É uma visão que ignora o óbvio! Quanto mais fontes intermitentes entram no sistema, mais precisamos de fontes controláveis. A biomassa pode cumprir esse papel, com a vantagem de ser renovável e nacional.

Energia que gera desenvolvimento, não apenas megawatts

Outro ponto que raramente entra na conta é o impacto social da biomassa.

Eu vejo, de perto, cidades inteiras que giram em torno de uma usina. Municípios de cinco ou seis mil habitantes que vivem da cadeia da cana, do emprego, da arrecadação, da economia que ela movimenta.

Essas usinas mantêm o interior do Brasil vivo. Geram emprego, renda e qualidade de vida. E ainda evitam investimentos bilionários em linhas de transmissão, porque estão próximos dos centros de consumo.

Essas externalidades, como chamamos no setor, são reais e deveriam ser valorizadas. No entanto, ainda não são reconhecidos nos mecanismos de mercado.

Segundo a FGV Energia, o agronegócio responde por 29% de toda a energia renovável consumida no país, mostrando o peso do setor agroindustrial, onde está inserido a biomassa, na matriz energética nacional.

A bioeletricidade representa menos de 5% do faturamento total de uma usina de cana. É natural que o foco esteja em açúcar e etanol. Mas essa falta de atenção faz o setor perder oportunidades.

Eu já vi isso acontecer antes. Quando o mercado muda e o produtor não se move, o bonde passa. E quem não estiver preparado, fica para trás. Por isso, o momento é de alerta. A biomassa precisa se reinventar para continuar relevante. Isso significa adaptar a operação, dialogar com os órgãos reguladores, participar dos leilões certos e, acima de tudo, mostrar que sabemos entregar potência com eficiência e responsabilidade ambiental.

O caminho até 2030

Se fizermos a lição de casa, a biomassa pode voltar a crescer com força até 2030.

O setor sucroenergético é mais capitalizado, mais profissional e com tecnologia suficiente para diversificar receitas. O que falta agora é visão estratégica.

O país precisa entender que a biomassa não é o passado da energia renovável, e sim o que vai garantir o futuro.

Enquanto celebramos a expansão da energia solar e eólica, não podemos esquecer que o sistema precisa de estabilidade. Essa estabilidade está nas usinas que já estão no campo, prontas para atuar com flexibilidade e inteligência.

Se o Brasil quiser uma transição energética sólida, que combine sustentabilidade, potência e desenvolvimento regional, precisa olhar com mais seriedade para a biomassa.

A energia que pode manter o Brasil assim não vem apenas do sol ou do vento. Ela pode estar, de novo, no campo.

José Piñeiro, executivo da Tria Energia, com 24 anos de experiência no setor de energia, sendo 14 no setor sucroenergético. Atuou em cargas de liderança na Bunge Brasil, BP Bunge e BP Bioenergy, com foco em estratégias comerciais e gestão de energia. MBA Executivo pela Fundação Dom Cabral.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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