Em um dos debates mais contundentes realizados até agora na Zona Verde da COP30, o Ministério Público Federal (MPF) expôs, na tarde desta sexta-feira (14), a dimensão alarmante da contaminação por mercúrio na Amazônia — um cenário que, segundo procuradores, pesquisadores e especialistas presentes, já reúne elementos comparáveis à tragédia de Minamata, no Japão.

A exibição do documentário Amazônia, a Nova Minamata?, de Jorge Bodanzky, serviu de gatilho para uma roda de conversa que reafirmou: o envenenamento silencioso das águas amazônicas está produzindo impactos devastadores nas populações tradicionais, e o país segue sem uma política robusta de prevenção, controle e reparação.

O debate destacou um dado central que passa quase despercebido no país: entre 2018 e 2022, ao menos 185 toneladas de mercúrio de origem desconhecida podem ter sido usadas na produção de ouro em garimpos no Brasil, sobretudo na Amazônia, segundo estimativa do Instituto Escolhas. O metal, altamente tóxico e utilizado de maneira indiscriminada pelo garimpo ilegal, transforma-se em metilmercúrio ao ser despejado na água — sua forma mais venenosa — acumulando-se em peixes consumidos diariamente por indígenas e ribeirinhos.

“Essa contaminação não só mata, mas tortura”, disse a procuradora regional da República Sandra Kishi, ao abrir o painel. Ela relatou a angústia das mães que vivem à margem dos rios contaminados, sem saber como seus filhos serão afetados pelo consumo contínuo de peixes envenenados. Os impactos incluem danos neurológicos graves, malformações congênitas, problemas cognitivos e prejuízos irreversíveis ao desenvolvimento infantil.

Minamata: o passado que volta a assombrar

A comparação com Minamata não é gratuita. No Japão, entre as décadas de 1930 e 1960, o despejo industrial de compostos de mercúrio provocou milhares de casos de cegueira, paralisia, deformidades congênitas e mortes. A tragédia, reconhecida pela OMS como uma emergência sanitária sem precedentes, deu origem à Convenção de Minamata, da qual o Brasil é signatário. O tratado exige justamente o que especialistas afirmam faltar hoje no país: controle rígido, monitoramento e políticas públicas amparadas por dados consistentes.

Para o pesquisador Marcelo Lima, da Rede Irerê de Proteção à Ciência, o Brasil está longe do mínimo necessário para proteger suas populações tradicionais. Ele defendeu biomonitoramento contínuo dos rios, testagem sistemática em gestantes e apoio permanente aos afetados.

“Mulheres grávidas têm o direito de saber o que vão comer. Todas as bacias da Amazônia têm registros de gente contaminada. Para cumprir a Convenção, o Brasil precisa ao menos de estrutura laboratorial”, alertou. Segundo ele, a invisibilidade social dos contaminados é hoje tão grave quanto o envenenamento em si.

Amazônia ferida: o retrato cinematográfico da tragédia

No filme, Bodanzky acompanha o povo Munduruku e expõe cenas que sintetizam a escala da destruição: crateras abertas pelo garimpo às margens do Tapajós e estudos que detectam níveis elevados de mercúrio no sangue e cabelo de indígenas — inclusive crianças e gestantes em situação de extremo risco.

Os paralelos entre Japão e Brasil se tornam evidentes à medida que o documentário avança. Órgãos internacionais apontam que mais de 200 mil km de rios amazônicos já apresentam alterações graves de qualidade por mineração ilegal. Levantamentos da Fiocruz e WWF revelam que 6 em cada 10 Yanomami estão contaminados acima do nível seguro, e, em algumas áreas, a exposição chega a ser oito vezes superior ao limite considerado aceitável pela OMS.

A procuradora da República Thais Santi, que atua no Pará, foi direta: o filme é “um retrato cinematográfico da desgraça que atinge a Amazônia”. Para ela, a tragédia é agravada por omissões históricas do Estado — desde a demora na demarcação de terras indígenas até a falta de controle do garimpo. “O Estado não sistematiza a informação que deveria, e isso orienta políticas econômicas equivocadas e a omissão na adoção de políticas públicas essenciais”, afirmou.

As respostas urgentes pedidas no painel

A audiência cobrou medidas imediatas: fortalecimento das ações do MPF para identificar e punir o uso ilegal de mercúrio; desenvolvimento de tecnologias para extração de ouro sem o metal; rastreamento do ouro que entra no mercado internacional, para evitar que grandes compradores adquiram minério da ilegalidade.

O produtor do filme, Nuno Godolphin, reforçou que as soluções precisam ser rápidas: “É urgente criar mecanismos para impedir que compradores internacionais continuem financiando o ouro ilegal”.

O procurador da República Gilberto Naves Filho, que atua diretamente junto aos Munduruku, frisou o papel institucional da luta e a necessidade permanente de parceria com a comunidade científica. Já a documentarista Ana Aranha, diretora de Relatos de um Correspondente da Guerra na Amazônia, lembrou que o problema não é regional: “A falta de controle da qualidade da água é um problema de todos, não só da Amazônia”.

Participação do MPF na COP30

A presença do Ministério Público Federal na COP30 integra uma iniciativa conjunta da 4CCR (Meio Ambiente e Patrimônio Cultural), 6CCR (Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais), Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e Procuradoria da República no Pará (PRPA), com apoio da Secretaria de Cooperação Internacional (SCI).

Todos os debates são transmitidos pelo canal do MPF no YouTube. A programação completa e as notícias oficiais estão disponíveis em mpf.mp.br/cop30.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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