Opinião

Em 5 de novembro de 2015, o rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana, provocou a maior tragédia socioambiental da história do Brasil. Uma década depois — enquanto milhares de vítimas ainda aguardam reparação integral no Brasil —, a High Court of Justice da Inglaterra e País de Gales proferiu uma decisão histórica reconhecendo a responsabilidade da BHP pelos danos decorrentes do desastre. [1]

Gui Mendes

Apesar de ainda pouco conhecido pela comunidade jurídica brasileira, o julgamento pela Justiça inglesa de casos envolvendo danos ambientais ocorridos no exterior é prática estabelecida nos tribunais da Inglaterra e País de Gales. A título ilustrativo, recorde-se dos casos Vedanta Resources v Lungowe [2019] UKSC 20 (“Vedanta”) [2] e Okpabi v Royal Dutch Shell [2021] UKSC 3 (“Okpabi”) [3], em que a Supreme Court do Reino Unido confirmou que tribunais ingleses poderiam julgar casos envolvendo danos ambientais ocorridos além-mar.

A repercussão da sentença proferida pela High Court of Justice no dia 14 de novembro de 2025, todavia, reacendeu debates sobre a legitimidade de cortes estrangeiras julgarem eventos ocorridos no Brasil. Embora compreensíveis, tais questionamentos frequentemente desconsideram mecanismos consolidados de Direito Internacional Privado, alguns dos quais examinados, de forma sintética, no presente artigo.

Jurisdição inglesa sobre empresas domiciliadas na Inglaterra

Em primeiro lugar, a decisão não constitui uma tentativa de imposição, por autoridade jurisdicional estrangeira, de parâmetros reparatórios aplicáveis em território brasileiro. Trata-se, antes, do exercício regular e obrigatório da jurisdição inglesa sobre empresa ali domiciliada.

No polo passivo da ação, figuram: BHP Group Plc, companhia constituída e domiciliada na Inglaterra e País de Gales; e BHP Group Limited, empresa australiana. Nenhuma das rés era pessoa jurídica brasileira. À época do ajuizamento da ação, o grupo operava sob estrutura de Dual Listed Company (DLC), com entidades formalmente separadas, mas atuando como um único conglomerado. Por essa razão, a ação foi proposta contra ambas as empresas (Grupo BHP).

À época da propositura da ação, o Regulamento (UE) nº 1215/2012 (Recast Brussels Regulation), então aplicável, estabelecia em seu Artigo 4(1) que:

Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro.”

O Grupo BHP contestou o exercício da jurisdição inglesa, pleiteando:

extinção do caso por abuso processual (abuse of process), sob o argumento de que o litígio seria “irreversivelmente incontrolável” (irredeemably unmanageable) e poderia gerar decisões irreconciliáveis com processos no Brasil;
suspensão da ação contra a BHP Group Plc com base no Artigo 34 do Recast Brussels Regulation;
suspensão da ação contra a BHP Group Limited sob o argumento de que o Brasil seria o foro mais apropriado (forum non conveniens); e
suspensão com base nos poderes de gestão processual da corte.

O Juízo de primeiro grau acolheu integralmente as teses do Grupo BHP. Entretanto, a Court of Appeal, deferindo recurso dos autores, reformou a decisão em sua totalidade. Fazendo referência a vários precedentes paradigmáticos, como aqueles estabelecidos pela Supreme Court do Reino Unido em Vedanta e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em Owusu v. Jackson (C-281/02) (Owusu) [4], a Court of Appeal rejeitou cada um dos argumentos do Grupo BHP e afirmou categoricamente que, à luz do Brussels Recast Regulation, tribunais ingleses não podem declinar jurisdição sobre réus domiciliados na Inglaterra. [5] Restou, assim, estabelecida a jurisdição dos tribunais ingleses para o julgamento do caso Mariana.

Aplicação da lei brasileira como direito material

Outro ponto central é que a High Court of Justice, ao reconhecer a responsabilidade da BHP na decisão de 14 de novembro, procedeu à aplicação da lei material brasileira como parâmetro normativo para a solução da controvérsia, com fundamento no Regulamento (CE) nº 864/2007 (Rome II) [6]. Por outro lado, o direito processual inglês aplica-se ao caso.

Spacca

A High Court of Justice da Inglaterra e País de Gales, por meio de decisão da juíza Finola O’Farrell DBE, dedicou extensa análise às normas e princípios do ordenamento jurídico brasileiro, ao enfrentar questões como: a interpretação do regime da responsabilidade civil objetiva previsto nos artigos 3º, IV e 14, §1º da Lei 6.938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente); da responsabilidade civil objetiva conforme artigo 927, parágrafo único, do Código Civil; da responsabilidade civil subjetiva conforme artigo 186 do Código Civil; da responsabilidade civil com fundamento nos artigos 116 e/ou 117 da Lei 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações). Igualmente importante a análise da juíza O’Farrell, segundo a lei brasileira, de defesas arguidas pelas rés em relação à prescrição, aos efeitos de renúncias ou quitações contratuais em acordos no Brasil e à legitimidade ativa dos municípios para figurarem como autores no litígio inglês. Todas essas matérias foram decididas conforme o direito brasileiro.

É importante destacar que os tribunais ingleses estão bem equipados para lidar com demandas que envolvam lei estrangeira e empregam diversas ferramentas para determinar o seu conteúdo. Não à toa, a juíza O’Farrell reconheceu expressamente em sua decisão a autoridade da jurisprudência brasileira na interpretação da lei brasileira, afirmando que “a jurisprudência consolidada oriunda de decisões do STJ e do STF fornece a melhor evidência de como a lei escrita deve ser interpretada e aplicada”.

Além disso, a corte teve a oportunidade de avaliar prova técnica (oral e escrita) de vários especialistas em direito brasileiro sobre as questões em disputa durante essa fase do julgamento. Representando as mais altas qualificações acadêmicas do país, foram ouvidos os professores Ingo Wolfgang Sarlet, Édis Milaré, Marcelo Buzaglo Dantas, Nelson Rosenvald, Gustavo Tepedino, Viviane Muller Prado e Marcelo Fernando Trindade. Todos os especialistas tiveram oportunidade de apresentar pareceres escritos; e, com exceção do professor Édis Milaré, todos foram submetidos a exame oral pelas partes e pelo tribunal. Em sua decisão, a juíza O’Farrell analisou centenas de precedentes do Superior Tribunal de Justiça, do Supremo Tribunal Federal e de tribunais inferiores, além da melhor doutrina, tudo pormenorizadamente debatido ao longo de audiência que se estendeu por 11 semanas entre outubro de 2024 e março de 2025.

Papel do direito internacional privado na responsabilização de multinacionais

O caso Mariana ilustra como o direito internacional privado pode servir à realização da justiça em litígios transnacionais envolvendo empresas multinacionais.

Em um mundo globalizado, onde corporações operam através de complexas estruturas societárias distribuídas por múltiplas jurisdições, permitir que vítimas acionem a controladora em seu próprio domicílio, com aplicação rigorosa da lei do país em que efetivamente ocorreu o dano por tribunal devidamente capacitado e equipado para tanto, representa mecanismo essencial de responsabilização efetiva.

A busca por reparação perante tribunais ingleses não enfraquece a soberania brasileira, tampouco compete com os processos nacionais. Ao contrário:

amplia vias legítimas de responsabilização;
pode acelerar soluções negociadas;
contribui para assegurar recursos suficientes para reparação integral.

Para as mais de 620 mil vítimas, o reconhecimento da responsabilidade da BHP na Inglaterra representa avanço concreto na longa trajetória por justiça, e abre caminho para a segunda fase do julgamento, na qual serão apurados os danos.

Conclusão

A High Court of Justice da Inglaterra e País de Gales exerceu jurisdição mandatória sobre empresa domiciliada em seu território e aplicou rigorosamente o direito brasileiro, amparada na melhor jurisprudência e doutrina brasileira, com profundidade de análise que honra a complexidade do ordenamento jurídico nacional, além de prova pericial altamente qualificada.

A decisão não apenas valoriza o ordenamento jurídico brasileiro, como também estabelece precedente fundamental para o futuro do litígio transnacional. Demonstra que multinacionais podem — e devem — responder pelas consequências de suas operações em todas as jurisdições onde se estabelecem.

 


[1] INGLATERRA E PAÍS DE GALES. High Court of Justice. Município de Mariana and Others v BHP Group (UK) Limited and BHP Group Limited. [2025] EWHC 3001 (TCC). Mrs Justice O’Farrell DBE, julgado em 14 de novembro de 2025.

[2] Em Vedanta, cerca de 1.800 membros de comunidades rurais da Zâmbia ajuizaram ação contra a Vedanta Resources plc, empresa domiciliada no Reino Unido, e sua subsidiária zambiana Konkola Copper Mines plc (KCM), alegando danos pessoais, danos à propriedade e perdas decorrentes de descargas tóxicas da mina de cobre Nchanga nos cursos d’água locais desde 2005. Em decisão de 2019, a Supreme Court do Reino Unido confirmou a jurisdição dos tribunais ingleses sobre a empresa controladora domiciliada na Inglaterra, com fundamento no Artigo 4 do Recast Brussels Regulation, permitindo que as vítimas zambianas buscassem reparação na Inglaterra por fatos ocorridos na Zâmbia.

[3] Em Okpabi, comunidades nigerianas das regiões de Ogale e Bille ajuizaram ação contra a Royal Dutch Shell plc (RDS), empresa domiciliada no Reino Unido, e sua subsidiária nigeriana Shell Petroleum Development Company of Nigeria Ltd (SPDC), alegando danos ambientais generalizados, incluindo grave contaminação de água e solo, causados por numerosos vazamentos de oleodutos operados pela SPDC na Nigéria. Em decisão de 2021, a Supreme Court do Reino Unido reafirmou os princípios estabelecidos em Vedanta, determinando que havia real issue to be tried quanto à responsabilidade da empresa controladora inglesa pelas operações ambientais da subsidiária nigeriana, e confirmando a jurisdição dos tribunais ingleses para julgar empresas domiciliadas na Inglaterra por danos ambientais causados por subsidiárias no exterior.

[4] Em Owusu, Andrew Owusu, nacional britânico domiciliado no Reino Unido, processou N.B. Jackson, também domiciliado no Reino Unido, e outros por quebra de contrato de aluguel de villa de férias na Jamaica, após sofrer acidente que o deixou tetraplégico ao mergulhar no mar e bater a cabeça em banco de areia submerso. O Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu em 1º de março de 2005 que a Brussels Convention, vigente à época da propositura da ação, proíbe categoricamente tribunais de Estados Contratantes de declinar jurisdição conferida pelo Artigo 2 com base na doutrina de forum non conveniens, mesmo quando o foro alternativo é um Estado não-contratante, estabelecendo que o Artigo 2 é mandatório e que sua aplicação não pode ser contornada por considerações de conveniência de foro que comprometeriam a certeza jurídica e a proteção legal que fundamentam a Convenção.

[5] INGLATERRA E PAÍS DE GALES. Court of Appeal. Municipio De Mariana & Ors v BHP Group (UK) Ltd & Anor. [2022] EWCA Civ 951. Julgado em 8 de julho de 2022.

[6] O Regulamento (CE) nº 864/2007 (Rome II) estabelece regras uniformes sobre a lei aplicável a obrigações extracontratuais para os Estados-Membros da União Europeia. Essas regras se aplicavam para o Reino Unido à época da propositura da ação e foram incorporadas pelo direito inglês após o Brexit. O Artigo 4(1) estabelece que: “Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em acto lícito, ilícito ou no risco é a lei do país onde ocorre o dano, independentemente do país onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do país ou países onde ocorram as consequências indirectas desse facto.” O Artigo 15 do Rome II, por sua vez, sobre o alcance da lei aplicável, esclarece que “A lei aplicável às obrigações extracontratuais referidas no presente regulamento rege, designadamente: a) O fundamento e o âmbito da responsabilidade, incluindo a determinação das pessoas às quais pode ser imputada responsabilidade pelos actos que praticam; b) As causas de exclusão da responsabilidade, bem como qualquer limitação e repartição da responsabilidade; c) A existência, a natureza e a avaliação dos danos ou da reparação exigida; d) Nos limites dos poderes conferidos ao tribunal pelo seu direito processual, as medidas que um tribunal pode tomar para prevenir ou fazer cessar o dano ou assegurar a sua reparação; e) A transmissibilidade do direito de exigir indemnização ou reparação, incluindo por via sucessória; f) As pessoas com direito à reparação do dano pessoalmente sofrido; g) A responsabilidade por actos de outrem; h) As formas de extinção das obrigações, bem como as regras de prescrição e caducidade, incluindo as que determinem o início, a interrupção e suspensão dos respectivos prazos.” Tendo em vista que os danos sofridos pelos autores em razão do rompimento da barragem ocorreram no Brasil, o direito aplicável foi o brasileiro.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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