Por Matheus Souza
A Ilha de Maré, localizada na Baía de Todos os Santos, em Salvador (BA), é vasta em história, inspiração poética, paisagens paradisíacas e biodiversidade. Em 2022, a localidade superou o bairro da Liberdade e se tornou a região com maior população negra da capital baiana. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do mesmo ano, 97% dos 3.916 moradores do bairro se identificam como afrodescendentes.
Maior território quilombola de Salvador e lar de comunidades pescadoras e ribeirinhas, a ilha está com sua riqueza cultural e material ameaçadas pela degradação ambiental, que impacta diretamente a sobrevivência, economia e saúde da população local.
A enseada abriga a Base Naval de Aratu, o Porto de Aratu, um estaleiro e duas marinas. A área se tornou um dos grandes pólos de comércio industrial do país, com a Refinaria Landulpho Alves (RLAM), o Complexo Industrial de Aratu (CIA), o Centro Industrial do Subaé e o Complexo Petroquímico de Camaçari (COPEC), além do Porto de Aratu-Candeias, responsável por 60% de toda a carga movimentada em modal marítimo na Bahia.
Muitas comunidades ribeirinhas e pesqueiras, formadas majoritariamente de pessoas negras e quilombolas, sofrem diretamente as consequências da poluição das águas ocasionada pelo despejo de detritos realizado pela indústria da região.
Manguezal sob ameaça

O manguezal é um ecossistema de extrema relevância ecológica e social, muito importante pelo que representa para as comunidades estabelecidas em seu entorno, servindo como fonte de alimentação, trabalho e identidade para as pessoas que dele sobrevivem.
A professora, bióloga, especialista em gestão ambiental municipal e mestre em solos e qualidade de ecossistemas pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Mônica Vasconcelos Ramos, se dedicou à estudar o possível impacto da atividade industrial para esse tipo de bioma, em especial na Baía de Todos os Santos.
A pesquisa, intitulada ‘Variabilidade espacial-temporal na biodisponibilização de elementos tóxicos para Ucides cordatus na Baía de Todos os Santos’ teve início em 2018 e surgiu em parceria com a Universidade Santiago de Compostela, na Espanha. O estudo envolveu a análise de contaminantes em caranguejos Ucides cordatus e no solo das áreas afetadas. Além de um animal de extrema importância para a manutenção dos manguezais, esse tipo de caranguejo é o mais consumido pela população e um importante recurso da mariscagem local.
Quatro manguezais foram analisados na pesquisa: Um no estuário do Subaé, área contaminada pela Companhia Brasileira de Chumbo (Cobrac), desde os anos 60; O manguezal da Ilha de Maré, pela proximidade de grandes empreendimentos, como o Porto de Aratu; e os manguezais de Ponta Grossa e Caixa Prego, zonas mais distantes das áreas industrializadas.
“Meu interesse foi justamente entender como a presença desses empreendimentos impõem riscos à população e também influencia na qualidade dos manguezais, sendo estes ambientes importantes para o estoque de carbono, espaços de importância na produção de biomassa, na mariscagem e na pesca”, explica a bióloga.
Foram analisados metais pesados, com elevado nível de toxicidade para seres vivos: cobre, zinco, cromo, níquel, chumbo, cádmio, além de mercúrio. Ilha de Maré apresentou testes positivos para todos os metais em concentrações mais elevadas que as demais localidades. A área se destaca como ambiente mais enriquecido com metais em comparação aos outros manguezais.
Os valores mais elevados foram registrados para o cobre, o que para Mônica foi uma surpresa. “Se fala muito sobre a contaminação de chumbo na Baía de Todos os Santos, mas o cobre para mim foi uma surpresa, principalmente com valores tão elevados no caranguejo”, ela comenta. A professora explica que Ilha de Maré possui características ambientais – como o padrão de sedimentação e sua hidrodinâmica – que favorecem a sedimentação e o acúmulo metálico, o que pode explicar esses valores mais altos.
Os níveis encontrados na região superam os valores estabelecidos pelo Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) em relação ao limite de prevenção para sedimento, e pela NOAA, agência americana que trata de valores associados à qualidade ambiental. Tudo isso pode indicar um possível risco à biota, e consequentemente para a população humana.
A possível origem do cobre pode estar associada à tinta antiincrustante utilizada no casco de embarcações, assim como o zinco. Ao investigar o porto de Aratu, empreendimento mais próximo à Ilha de Maré, a pesquisa descobriu que, coincidentemente, o minério de cobre é transportado neste porto em frente ao bairro. “Então, podemos inferir, que existe uma possível fonte de contaminação de cobre associada a atividade portuária. Esta é uma das hipóteses”, explica a bióloga.
Mônica conta que voltou à ilha para conversar com uma liderança da região, Marizélia Lopes, conhecida como Nega Lopes, marisqueira e ambientalista, para compartilhar os resultados da pesquisa e entender um pouco mais as dificuldades enfrentadas por essas comunidades.
“Nega acabou divulgando meu trabalho e eu compartilhei com ela meus artigos. De alguma maneira, temos usado essa divulgação do estudo para fortalecer a luta. Esta foi a maneira que encontrei de dar um retorno: utilizar essa pesquisa como instrumento político e de mudança para apoiar a visibilidade desse problema”, finaliza.
Salinas da Margarida

Outro território afetado pela contaminação é o município de Salinas da Margarida (BA). Situado no Recôncavo Baiano, a cidade fica a cerca de 270 km de Salvador. Importante território quilombola e pesqueiro, Salinas também está sendo ameaçada pelo avanço da atividade industrial e pelo impacto ambiental que os empreendimentos geram para a região.
Elionice Conceição Sacramento, pescadora e quilombola, é oriunda do Quilombo de Conceição localizado na cidade e conta como a atividade da pesca artesanal tem sido afetada pelo lobby empresarial. Militante do Movimento de Pescadores e Pescadoras (MPP) e parte da Articulação Nacional das Mulheres Pescadoras (ANP), Elionice atuou como coordenadora da associação local, e atualmente compõe o conselho consultivo. Ela faz parte da sexta geração das Filomenas, mulheres pescadoras quilombolas da comunidade.
“Nós acreditamos profundamente na pesca artesanal. Defendemos essa atividade como um modo viável e sustentável de vida. Ainda que muitas vezes seja construída uma visão de miséria, pobreza, sobre nossa comunidade, nós não somos miseráveis”, explica.
“Só que esse modo de vida tradicional além de ser invisibilizado, também não possui estatísticas da produção pesqueira. Nós dizemos que essa é uma decisão do Estado brasileiro, para nos invisibilizar e favorecer os empreendimentos do capital.”
Este jeito de viver no quilombo, pautado pela ancestralidade, vem sendo ameaçado pelos grandes empreendimentos. Elionice explica que é preciso pensar o mar, em especial a Baía de todos os santos, como um território cujas fronteiras geográficas não se impõem do jeito que a mentalidade humana normalmente concebe. Ela salienta que tudo aquilo que é descartado no lixo das cidades, as correntes marinhas trazem até os territórios como o dela, e isso gera impacto.
A maioria das comunidades no município não possuem saneamento básico, e a falta de coleta de lixo e dejetos adequados afeta diretamente a pesca artesanal. Nos últimos anos, a mortandade de alguns pescados que, outrora, se apresentavam bem resistentes, tem surpreendido as marisqueiras e pescadoras da região. O sarnambi, por exemplo, marisco mais capturado pelas pescadoras, teve sua produção drasticamente encolhida.
Houve também uma diminuição do xangó, pescado semelhante a pititinga e de extrema importância para a atividade de pesca no quilombo. “Geralmente onde o xangó está é uma forma de sinalizar onde há outros pescados presentes, pois ele serve de alimento para pescados maiores”, explica a marisqueira. Ela menciona exemplos de outros momentos em que houve impacto semelhante, como com a instalação do estaleiro Enseada do Paraguaçu e no fenômeno da maré vermelha, “que disseram ser natural, mas a proliferação de algas não é natural, é um reflexo do processo de contaminação da baía”,
Elionice explica que em Conceição, outras mulheres têm se articulado politicamente no sentido de produzir informações sobre esses processos de contaminação.
A Associação do Quilombo de Conceição de Salinas da Margarida desenvolve anualmente uma ação intitulada Setembro/Novembro da Resistência, um conjunto de atividades voltadas à dar visibilidade para o problema. Há também coleta mensal de plástico e outros resíduos no manguezal.
Além disso, um processo corre no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), desde 2007, para criação de uma reserva extrativista que será chamada de Subaé-Salinas. A medida tem a função de garantir uma maior proteção para o território.
“Temos feito denúncias ao Ministério Público. Entendemos também que a mídia, sobretudo a mídia alternativa, é uma aliada importante para dar visibilidade à essas denúncias.”
Toxic Tour
A fim de denunciar o problema da contaminação industrial e do lobby empresarial na região surge a Toxic Tour, um passeio conduzido pelas pescadoras e marisqueiras de Ilha de Maré, que ao longo do trajeto narram suas histórias de enfrentamento e resistência, e tecem um diálogo entre a comunidade, imprensa, ambientalistas, estudiosos e poder público.
O termo Toxic Tour aparece pela primeira vez em um documentário brasileiro intitulado Toxitour (2017), do diretor Raoni Maddalena. Na obra, o cineasta visitou o município de Nueva Loja, no extremo norte do Equador. A cidade faz parte da região de Lago Agrio, uma área na Amazônia equatoriana e muito rica em petróleo. O local foi explorado durante 26 anos pela antiga Texaco, empresa petrolífera estadunidense adquirida pela Chevron em 2001.
A visita do diretor aos locais contaminados foi feita com ajuda de Donald Moncayo, no que ele chamava de Toxitour – daí o nome do documentário.
Na Bahia, o passeio tem entre suas idealizadoras a vereadora Eliete Paraguassu (PSOL). Mulher negra, marisqueira, pescadora e quilombola da Ilha de Maré, a parlamentar faz parte do MPP há mais de 20 anos.
“Nosso trabalho é na defesa do povo das águas, da vida nas Comunidades pesqueiras e do meio ambiente em que elas vivem”, explica a vereadora.
“Nós queremos construir a narrativa de denúncia a partir da academia, dos estudos, mas também a partir das experiências do território e do seu lugar, da sua história, das suas resistência, do seu jeito de viver e de fazer nessa Salvador não vista.”
Eliete pontua que o problema da Baía de Todos os Santos com a exploração e opressão de comunidades vem desde o período colonial, sendo esta uma herança do processo escravocrata. Além da exploração industrial, os empreendimentos governamentais também representam uma ameaça ambiental para a região.
A vereadora cita como exemplo das consequências da contaminação da região um estudo realizado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), que avaliou o ar ambiente, água de beber e moluscos comestíveis de diferentes municípios do Recôncavo Baiano e da região metropolitana de Salvador. A pesquisa constatou uma concentração de metais pesados como cádmio e chumbo quatro vezes maior do que o permitido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
O projeto da ponte Salvador-Itaparica, da gestão de Jerônimo Rodrigues (PT), é um dos exemplos de medidas governamentais que ameaçam o meio ambiente e as comunidades de Ilha de Maré e do Recôncavo. A obra não seguiu a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a OIT, que recomenda que comunidades de culto de matriz africana devam ser consultadas previamente sempre que tiverem seus modos de vida e as estruturas físicas de seus cultos impactados por um empreendimento ou uma obra.
“Esta é uma tragédia anunciada para os territórios das águas, sobretudo para a baía, que vai ser ferida na alma, cortada no meio. Nosso gabinete propõe uma Salvador onde a natureza seja vista como sujeita de direito. A Baía de Todos os Santos tem o direito de permanecer viva, produzindo alimento, vida animal e vida humana”, declarou a vereadora.
Ela relembra que a Baía Kirimurê – que significa “grande mar interior” e é como era chamada a Baía de Todos os Santos pelos tupinambás que a habitavam na região antes da colonização – é responsável por muito dos alimentos que suprem a capital, além de ser um grande berço cultural e ambiental do país.
“É preciso haver respeito com aqueles e aquelas que fizeram a defesa dessa baía ao longo do processo escravocrata, do qual se deu a existência do Brasil como conhecemos. Tudo começou na Baía Kirimurê e a nossa ancestralidade foi quem lutou para estarmos aqui hoje.”, finaliza.
