Poucos cineastas filmam a tensão entre a liberdade e a repressão com tanta serenidade quanto o iraniano Jafar Panahi. Desde O Círculo (2000), passando por Táxi Teerã (2015), seu cinema se desenvolveu entre paredes — físicas, políticas, morais — e encontra nelas um espaço para pensar o mundo.
Panahí filma a vida no que ela tem de mais ambíguo: os gestos banais que revelam abismos éticos, o cotidiano que se torna metáfora. Em Foi apenas um acidentevencedor da Palma de Ouro não Festival de Cannes e liste na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Pauloem cartaz nos cinemas brasileiros a partir desta quinta-feira, 4 de dezembro, o diretor volta aos temas que são caros, desenvolvendo um episódio trivial — o atropelamento de um cachorro — em uma reflexão sobre culpa, memória, vingança e a impossibilidade de acessórios.
Na história, o mecânico Vahid (Vahid Mobasseri) acredita seriamente, no motorista envolvido no acidente, o homem que o torturou no passado. A dúvida se torna o motor da narrativa: até que ponto é possível distinguir o algoz da vítima, e o que se ganha — ou se perde — ao buscar vingança?
Em vez de respostas, Panahí oferece zonas cinzentas. Seu filme não investiga apenas um crime ou um evento isolado, mas o eco prolongado da violência e a dificuldade de seguir adiante quando o passado insiste em permanecer. Vahid vai atrás de outras pessoas que podem confirmar a identidade do torturador, mas a incerteza parece cada vez mais certa e a vingança vai perdendo sentido.
Panahí construir essa tensão com a sobriedade de quem conhece a dor sem precisar dramatizá-la. Condenado no Irã a vinte anos sem poder filmar ou conceder entrevistas, o cineasta faz de sua experiência de aprisionamento uma lente para observar o outro. O resultado é uma ficção que sempre à beira do real — não por se confundir com sua biografia, mas por compartilhar sua inquietação ética. Nesse sentido, Foi apenas um acidente troca o espetáculo pelo desconforto, o clímax pela dúvida. Cada silêncio é uma ferida aberta; cada olhar, um julgamento suspenso; cada som da perna mecânica do possível torturador, uma ameaça.
E, como em toda a sua filmografia, há humor — um humor que não ameniza a situação, mas que revela sobre aquelas pessoas — e sobre nós mesmos. Panahí transforma a comédia em uma ferramenta moral, um modo de iluminar o absurdo cotidiano sem perder a ternura. Entre ironias discretas e pequenos mal-entendidos, o filme se aproxima da comédia de erros, mas de tipo reflexivo, em que rir é também uma forma de reagir ao absurdo. Ninguém aqui é ferido ou inocente, e é nesse terreno sinuoso que o diretor encontra a força de seu cinema: a capacidade de compreender antes de condenar.
O estágio, filmado com uma precisão cruel, condensada toda a ambiguidade do percurso e a ética do cinema de Panahí. O gesto final pode ser lido — no caso, ouvido — como ameaça ou redenção, talvez ambos, a depender do espectador. O cineasta não oferece catarse; oferece a sugestão, o pensamento sobre, a inquietação.
A vingança, no fim, é um prato que ninguém quer servir — não por falta de coragem ou certeza, mas por perceber que o seu sabor será o mesmo de conviver com a culpa. O que resta é o silêncio, essa forma madura de resistência que Panahí domina como poucos. Seu cinema, feito entre proibições e recomendações, continua a ser um ato de fé na arte e esperança na humanidade, revelando, novamente, o que quase ninguém mais tem coragem de ouvir: a consciência.
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