Na manhã do incêndio, Li estava em casa quando recebeu uma ligação da mulher avisando sobre o fogo. Sem que os alarmes funcionassem — estavam com defeito —, ele não imaginou a gravidade da situação. Perdeu quase dez minutos separando pertences antes de abrir a porta e ser dominado por uma nuvem espessa de fumaça que o obrigou a recuar. Do outro lado da linha, sua mulher entrava em pânico enquanto ele tentava conter a fumaça com toalhas molhadas e decidir o que fazer.

Foi então que o homem ouviu vozes no corredor tomado pela escuridão. Protegeu o rosto com uma toalha molhada e avançou às cegas até encontrar dois vizinhos, que identificou pelo tato. Ele os arrastou para dentro de seu apartamento, ainda relativamente seguro. Enquanto isso, em outro bloco, a moradora Bai Shui Lin, de 66 anos, também tentava alertar vizinhos, batendo de porta em porta. Ela teria ajudado ao menos três famílias, mas não sobreviveu. Seus filhos reconheceram seu corpo dias depois.

No apartamento de Li, o casal resgatado contou ter ouvido outra voz no corredor: uma trabalhadora doméstica à procura de uma idosa. Logo o chamado cessou, e Li não conseguiu voltar para ajudar.

— Eu me sinto muito culpado — contou à BBC: — Algumas pessoas não foram salvas, e eu não abri a porta novamente para tentar encontrá-las. Meu coração se parte quando me chamam de herói

Entre as vítimas, estão nove trabalhadoras indonésias e uma filipina. Outras sobreviveram, como Rhodora Alcaraz, 28 anos, que ficou presa em outro apartamento cuidando de um bebê e de uma idosa. Ela também recebeu o rótulo de heroína. Em mensagens de voz enviadas à irmã, disse: “Estou me sentindo muito fraca. Não consigo respirar”.

Li, o casal Chow e outros moradores permaneceram por horas encurralados. Uma saída de emergência estava em chamas; a outra, segundo relatos, trancada.

Pular da janela do segundo andar era impossível diante do fogo e das explosões. Foi nesse momento que Li sentiu, pela primeira vez, a proximidade da morte. Sem ver saída, passou a enviar despedidas a amigos pelo WhatsApp: “Não consigo escapar” e pediu: “Se algo acontecer comigo, cuidem dos meus filhos. Cuidem de vocês”.

Os bombeiros conseguiram alcançá-los apenas duas horas e meia após o início do incêndio, utilizando uma escada aérea. Segundo relatos, Li insistiu que o casal Chow fosse retirado primeiro. Quando chegou sua vez, hesitou, tomado pelo apego aos objetos que guardava em casa.

— O fogo estava me dizendo que eu não poderia levar nada, que eu não tinha direito nem poder para impedir que ele devorasse tudo — relata.

Após o resgate, encontrou a família em um restaurante próximo antes de seguir ao hospital. Só ali, ao parar para respirar, o trauma o atingiu com força.

— Quando cheguei à emergência, meus joelhos cederam. Um cheiro de queimado permanecia no meu nariz. Eu queria muito tirar aquele cheiro — contou à BBC.

Internado às 3h da madrugada, desabou emocionalmente. Ao contrário de outras internações, desta vez não queria voltar para casa.

— Dessa vez, quando a enfermeira me perguntou [se eu queria ir para casa], eu não queria sair. Sentia que estava evitando o que teria de enfrentar no futuro.

Determinado a enfrentar o trauma, Li passou a dar entrevistas na esperança de que sua história provoque uma investigação profunda sobre as causas da tragédia.

— Espero que muitas pessoas apareçam para ajudar a descobrir a verdade. Espero que os moradores do Wang Fuk Court tenham respostas e justiça.

O número de mortos subiu para 159 nesta quarta-feira, após a inspeção de todas as torres afetadas no complexo residencial, informou a polícia.

“Encontramos 159 corpos, dos quais 140 foram identificados de forma preliminar”, afirmou o comissário de polícia Joe Chow em uma entrevista coletiva. Ele descreveu o balanço como um “compêndio provisório”, após a conclusão das operações de busca no complexo.

Ele afirmou que o número pode ser revisado, porque os agentes encontraram “o que parecem ser ossos humanos” que exigem exames forenses.

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O incêndio foi o mais letal em um edifício residencial no mundo desde 1980. Entre os falecidos estão pelo menos 91 mulheres e 49 homens. A vítima mais jovem é um bebê de um ano e a mais velha tinha 97 anos, acrescentou Chow.

As autoridades afirmam que as chamas se propagaram rapidamente através das redes de plástico que cobriam os andaimes de bambu instalados para obras de reforma e que não cumpriam as normas de resistência ao fogo.

O governo de Hong Kong anunciou na terça-feira a criação de um “comitê independente”, liderado por um juiz, para investigar as causas da tragédia. Quinze pessoas foram detidas e acusadas de homicídio culposo.

— Criarei uma comissão independente para realizar uma revisão abrangente e completa, reformar o sistema de construção civil e evitar tragédias semelhantes no futuro — declarou Lee em uma entrevista coletiva.

Até o momento, o órgão anticorrupção de Hong Kong e a polícia, que estão conduzindo uma investigação conjunta sobre o incêndio, anunciaram a detenção de 15 pessoas suspeitas de homicídio culposo pelo incêndio no complexo Wang Fuk Court, no distrito de Tai Po.

Hong Kong dispõe de um mecanismo legal para criar “comissões de investigação”, lideradas no passado por juízes para coordenar tarefas complexas de investigação, uma prática herdada do domínio colonial britânico.

Lee disse à AFP que as autoridades identificaram várias falhas e que são necessárias mudanças nas normas de segurança, supervisão, construção e manutenção.

— Os culpados tentaram misturar redes de qualidade inferior com redes certificadas para enganar os órgãos de inspeção e as forças de segurança — afirmou Lee.

A cidade, abalada pela tragédia, prestou homenagem durante um período de luto de três dias. Milhares de pessoas deixaram flores e notas com pedidos para que os culpados sejam responsabilizados. A imprensa local informou que várias pessoas que pediam explicações sobre a tragédia foram detidas.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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