“A lagoa era bastante movimentada, todo mundo trabalhava”, lembra Maria Aurineide, marisqueira do bairro Vergel do Lago, em Maceió, que há mais de 20 anos tira dali o sustento da família.

O afundamento do solo causado pela exploração de sal-gema da Braskem — considerado o maior desastre ambiental em área urbana em curso no mundo — pode ter não apenas atingido os bairros Pinheiro, Mutange, Bom Parto, Bebedouro e parte do Farol. 

A economista e professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Natallya Levino, afirma que o desastre da mineradora agravou um cenário já marcado pela poluição, reduzindo a produção de sururu e pressionando marisqueiras, que dependiam da Lagoa Mundaú para existir, a migrarem para outras atividades. 

O sururu, considerado patrimônio imaterial de Alagoas, é um dos símbolos culturais e econômicos mais fortes e importantes do Estado. A lagoa, que divide os municípios de Maceió, Marechal Deodoro e Coqueiro Seco, é a principal fonte de renda de pescadores e marisqueiras da capital alagoana, já que é berço do molusco bastante consumido na gastronomia local. 

A coleta do alimento é feita manualmente por pescadores, que usam pás ou enxadas para escavar os bancos de lama da lagoa. Em seguida, eles são repassados para as marisqueiras, que tiram da casca, limpam e selecionam os sururus em boa qualidade. 

No Vergel, onde o molusco sempre foi fonte de renda e identidade para muitos moradores, a perda de território e o deslocamento forçado das áreas de coleta alteraram profundamente a rotina das marisqueiras. 

Com menos acesso à lagoa, maior distância para trabalhar e um volume de sururu cada vez mais instável, o que antes era cotidiano virou incerteza. Foi assim que a economia local precisou se reestruturar para não parar. 

O Sururote, moeda social criada pelo Banco Laguna, surgiu como uma resposta as dificuldades que acompanharam a reorganização da economia no entorno da Lagoa Mundaú. 

A iniciativa nasceu em 2019, junto ao Projeto Sururu, pensado para dar novo destino às cascas do marisco, reduzir o impacto ambiental e ampliar as fontes de renda das marisqueiras.

Com a mudança no ciclo produtivo com a incorporação do uso da casca na fabricação de materiais de construção, como o Cobogó Mundaú, ficou clara a necessidade de oferecer apoio financeiro às trabalhadoras durante a transição. 

Foi nesse contexto que o Instituto Mandaver, responsável pelo Banco Laguna, criou o Sururote. Equivalente ao real e aceito apenas em estabelecimentos credenciados, a moeda passou a impulsionar a circulação de renda dentro da própria comunidade. 

Ao mesmo tempo, criações como as peças da estilista maceioense Rúbia Safira, que vestiu a cantora Joyce Alane no Grammy Latino, feitas com a casca do molusco, mostram para o mundo a força do trabalho das marisqueiras, que enfrentam uma realidade de esquecimento em um território que segue marcado por perdas, restrições e disputas por sobrevivência.

 

Vestido da cantora Joyce Alane – Foto: Cortesia

 

Produção em queda brusca

Hoje, a realidade das marisqueiras em Maceió não se trata de superação, mas de adaptação forçada. No Mutange, onde fica boa parte das minas da Braskem, uma área de mangue foi interditada para pesca e navegação após o rompimento da mina 18, em dezembro de 2023.

Embora especialistas afirmem que o rompimento da mina não impactou a água da Lagoa Mundaú, Aurineide conta que a perda de território transformou a coleta de sururu para pescadores e marisqueiras e que o aparecimento de peixes mortos tem sido frequente. 

“Ficamos desempregados, ficamos à toa. Na área de coleta nós perdemos porque ultimamente a gente não tem mais o sururu suficiente como antes. O meu amigo foi pescar e perdeu 40 quilos de peixe quando foi buscar, já estava tudo morto na própria rede”, conta. 
 

Pescadores na Lagoa Mundaú, no Pontal da Barra – Foto: Madu Cardoso

 

Segundo a marisqueira, a coleta do sururu é pouca atualmente. Ela conta que os pescadores, que antes tiravam cerca de 50 latas de sururu por dia, hoje só tiram entre cinco e dez. 

“Nós tínhamos muita mercadoria, hoje não temos mais. Não temos as condições que tínhamos antes de tirar o sururu, porque muita gente tirava até sentado. E hoje os pescadores descem de 8 a 10 metros de ‘fundura’ para tirar 10 latas de sururu”, relata.

Além disso, Aurineide afirma que o acesso à lagoa, antes livre, está complicado devido ao impedimento pelas barreiras. Por essas dificuldades, pescadores e marisqueiras precisaram migrar para outras atividades. 

“Tá muito difícil de se ver o sururu aqui na nossa lagoa. Muitos pescadores hoje estão trabalhando em firma, na Braskem, na BRK, as mulheres trabalham como faxineiras. E assim vão se virando, são poucas as pessoas que estão trabalhando no sururu”, desabafa. 

Aurineide conta que a relação da comunidade com o sururu atualmente é dolorosa. Segundo ela, antigamente o fim do ano era motivo de felicidade porque significava ganhar “uns centavos a mais com o sururu”, mas hoje a alegria não ocupa mais o trabalho dessas pessoas. 

“Nos sentimos desamparados, tristes; já não somos mais as mesmas pessoas de antes. Muitos estão sem nada, alguns até sem ter o que comer em casa, vivendo apenas, infelizmente, do Bolsa Família”, relatou.

Da Lagoa Mundaú a maior premiação de música do mundo

O trabalho desenvolvido pelas marisqueiras protagonizou o Grammy Latino, realizado em Los Angeles (EUA), quando a estilista Rúbia Safira vestiu a cantora pernambucana Joyce Alane com um vestido feito da casca do sururu. 

Segundo Safira, o vestido nasceu da observação da lagoa — a forma como a luz reflete na água e os movimentos suaves foram traduzidos na saia.

“A parte superior da peça surgiu da minha vontade de homenagear o trabalho das marisqueiras. Por isso, ela remete a uma ‘roda do tempo’, simbolizando a força, o ciclo e o trabalho árduo dessas mulheres. Assim, o vestido se tornou uma criação que une natureza, memória e ancestralidade”, conta.

 

Vestido da cantora Joyce Alane – Foto: Cortesia

 

Ao Cada Minuto, a estilista conta que usar a casca do sururu é “valorizar quem vive dele” e fortalecer a cultura alagoana através da moda. “Eu quis dar a ele a relevância que merece sem perder sua essência nem sua origem. Eu quero que o trabalho delas [das marisqueiras] tenha relevância e que através das minhas peças eu possa contar isso”, compartilha. 

Safira explica que, quando começou suas pesquisas, em 2024, encontrou dificuldades em achar as cascas. “Muitas marisqueiras moravam em áreas como Bom Parto e Bebedouro e foram profundamente afetadas pelo afundamento do solo. Isso mexeu tanto com suas vidas pessoais quanto com o ecossistema da lagoa.”

Para Rúbia, o molusco carrega ancestralidade, trabalho e resistência — e contar essa história após o desastre causado pela Braskem é uma forma de dar voz, preservar memórias e reforçar a força dessas mulheres em meio a tanta fragilidade. “Recebi mensagens de mulheres que viveram ali [nos bairros afetados] me dizendo que se sentiram representadas ao ver o vestido. Para elas, o sururu fazia parte do cotidiano e até das brincadeiras da infância.”

Impactos ambientais, culturais e comunitários

Natallya Levino analisa os efeitos do desastre provocado pela Braskem na Lagoa Mundaú e em toda a cadeia produtiva do sururu, destacando perdas ambientais, econômicas e culturais que atingem diretamente pescadores e marisqueiras da região.

A economista explica que a lagoa já enfrentava altos níveis de poluição, mas o colapso da Mina 18 aprofundou um cenário que ela classifica como “profundamente crítico”, acelerando a queda na produção e ampliando a vulnerabilidade das comunidades que dependem do sururu para viver.
 

Economista e professora da Ufal, Natallya Levino – Foto: Ascom Ufal

 

Segundo a economista, a contaminação e a aparição do ‘sururu branco’ “afetaram diretamente a cadeia produtiva, diminuindo a quantidade de marisco disponível”, como relatam pescadores e marisqueiras.

O chamado sururu branco (a espécie exótica Mytilopsis sallei) começou a despertar preocupação entre pescadores, marisqueiras e pesquisadores por volta de julho de 2022. Naquele período, relatos de campo e análises da Ufal confirmaram a presença dessa espécie invasora na Lagoa Mundaú, marcando uma mudança significativa no ecossistema local.

A professora afirma ainda que há efeitos diretos e de longo prazo, especialmente porque “as marisqueiras têm migrado para outras atividades em busca de estabilidade financeira”. 

De acordo com a especialista, esse movimento compromete indiretamente a continuidade da prática, já que os mais jovens deixam de enxergar nela uma forma viável de sustento.

A economista avalia que o poder público ainda não respondeu de forma proporcional à gravidade do desastre. Ela relata ter participado de audiências públicas sobre o tema, mas destaca que “ainda falta robustez nas propostas e garantia de continuidade”. 

Segundo Levino, há demandas conhecidas, como a realocação para áreas distantes, falta de formação adequada e, sobretudo, a baixa qualidade da lagoa, que compromete o trabalho de toda a comunidade.

Diante desse cenário, iniciativas de ressignificação — como a moda feita com cascas de sururu — ganham relevância simbólica. A professora reconhece o valor cultural dessas ações, mas reforça que elas não podem substituir políticas estruturais. 

“O futuro da lagoa precisa ser o de recuperação dos recursos naturais”, afirma, destacando a necessidade de melhorar o saneamento, restaurar o mangue, garantir a balneabilidade e preservar as espécies.

Para Levino, Maceió tem um potencial “gigantesco”, mas só poderá aproveitá-lo plenamente quando houver investimento consistente na recuperação ambiental e no fortalecimento das comunidades tradicionais que sustentam a cultura do sururu.

Outro lado 

Procurada pela reportagem, a Braskem afirma que estudos da Ufal e de uma consultoria independente apontam que a extração de sal e a subsidência não influenciaram o ciclo do sururu, e que os efeitos do colapso da Cavidade 18 teriam ficado restritos à área onde a estrutura emergiu. 

A mineradora afirma que especialistas seguem monitorando a lagoa e atribuem os impactos ambientais, sobretudo à poluição causada pelo esgoto não tratado e por outros resíduos que chegam pelos afluentes. Veja nota na íntegra:

“A Braskem informa que os estudos realizados pela UFAL e por consultoria independente concluíram que não há influência da atividade de extração de sal e da subsidência no ciclo do sururu. Os impactos do colapso da Cavidade 18 ficaram restritos à área específica em que a cavidade atingiu a superfície, sem efeitos diretos além dessa região.

Avaliações são continuamente feitas por especialistas da UFAL, que identificam que os impactos na lagoa estão associados aos índices de poluição devido ao lançamento de esgoto não tratado e de outros poluentes oriundos de seus afluentes. A Braskem mantém as autoridades atualizadas sobre o avanço das ações relacionadas aos acordos firmados e reforça seu compromisso com a transparência e com as questões de Saúde, Segurança e Meio Ambiente.”

Foto de capa: Cortesia/Alice Machado

*Estagiária sob supervisão da editoria

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *