Programas de integridade na Lei de Licitações e ContratosProgramas de integridade na Lei de Licitações e Contratos


Opinião

Tradicionalmente tratada como expressão de consumo, estética e identidade, a moda passou a ser reconhecida, nas últimas décadas, como um fenômeno de relevância pública, cujo impacto ultrapassa os limites do comportamento individual e adentra campos jurídicos, econômicos, ambientais, trabalhistas e culturais.

A chamada visão pública da moda considera que cada decisão de design, produção, comercialização e descarte afeta não apenas o consumidor final, mas toda uma teia de relações sociais e institucionais — desde o meio ambiente e os direitos humanos até a economia local e o desenvolvimento urbano.

Portanto, reduzir a moda ao campo das tendências ou do consumo é ignorar sua dimensão política e estrutural.

A moda é uma questão pública, quando se envolve o uso de recursos naturais, trabalho humano, direitos de propriedade intelectual, circulação econômica e descarte de resíduos, entre outras e outras relações jurídicas, tudo tem incidência direta do Direito.

A indústria da moda: entre o glamour e a desigualdade estrutural

A indústria da moda global movimenta trilhões de dólares, gera milhões de empregos, mas também produz externalidades negativas de proporções alarmantes. Segundo dados da ONU (Unep, 2023), o setor têxtil é responsável por cerca de 10% das emissões globais de carbono e pelo descarte anual de 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis [1].

Além disso, concentra desigualdades profundas na cadeia produtiva — exploração laboral, ausência de transparência, greenwashing e práticas predatórias travestidas de sustentabilidade.

Spacca

As relações contratuais, fiscais, trabalhistas e ambientais ainda são tratadas de forma fragmentada.

Enquanto há leis rigorosas sobre segurança alimentar, medicamentos ou produtos químicos, o setor têxtil segue sem norma específica que discipline temas como origem de matérias-primas, transparência de cadeia, rastreabilidade e descarte pós-consumo.

Essa lacuna normativa amplia o abismo entre o lucro privado e o interesse público.

De um lado, marcas de alto faturamento; de outro, costureiras, catadores e comunidades impactadas por resíduos ou por más condições de trabalho.

O papel do Direito da Moda na governança e na sustentabilidade

O Direito da Moda (Fashion Law) surge justamente como campo interdisciplinar destinado a equalizar os interesses privados e públicos dentro da cadeia produtiva da moda. Não se trata apenas de proteger marcas e contratos, mas de integrar o olhar jurídico à responsabilidade socioambiental.

A aplicação de princípios constitucionais — como a função social da empresa (artigo 170, III, CF), a defesa do meio ambiente (artigo 225, CF), o direito à saúde (artigo 196, CF) e a valorização do trabalho humano (artigo 1º, IV, CF) — demonstra que a moda deve ser analisada sob o prisma de políticas públicas e deveres de sustentabilidade, e não apenas sob a ótica do consumo e da liberdade de mercado.

A doutrina de Scaf (2021, p. 112) [2] reforça que “o Direito da Moda é, em essência, uma ferramenta de governança ética e econômica; sua função não é proteger o luxo, mas responsabilizar a cadeia”.

Essa função equalizadora não retira da moda seu caráter criativo e econômico — pelo contrário: insere o setor em parâmetros modernos de Compliance ambiental, social e de governança (ESG), aproximando-o de políticas globais de desenvolvimento sustentável, como a Agenda 2030 da ONU, especialmente os ODS 12 (Consumo e Produção Responsáveis) e 13 (Ação contra a Mudança Global do Clima).

Do consumo à responsabilidade: o novo paradigma da Moda Cidadã

A sociedade contemporânea demanda um novo paradigma: a moda cidadã, orientada pela ética, pela transparência e pela responsabilidade compartilhada.

Nessa perspectiva, o papel do Direito é duplo: educar e responsabilizar.

Educar o consumidor e o empresário sobre os impactos de suas escolhas; e responsabilizar juridicamente quem perpetua modelos de produção e descarte prejudiciais à coletividade.

É aqui que nasce o elo com a discussão central deste estudo: o descarte responsável de roupas íntimas.

Os aspectos públicos da moda e o descarte de roupas íntimas

O descarte de roupas íntimas é a expressão máxima daquilo que a moda evita enxergar: o fim do ciclo de consumo e o corpo como vetor biológico.

Essas peças carregam não apenas identidade e intimidade, mas também resíduos orgânicos, fibras sintéticas e contaminantes que, quando descartados de forma inadequada, comprometem o meio ambiente e a saúde coletiva.

Trata-se de um ponto cego da economia circular: as roupas íntimas são rejeitadas por programas de doação e por iniciativas de reciclagem, mas não há norma jurídica que as enquadre como resíduo biocontaminado — diferentemente do que ocorre com resíduos hospitalares (Resolução Conama 358/2005 e RDC 306/2004 da Anvisa).

Revelam-se os aspectos públicos da moda ainda são negligenciados: o Estado não regula, a indústria ignora, e a sociedade descarta sem saber.

Ao trazer a discussão das roupas íntimas para o centro do debate jurídico, busca-se evidenciar que a sustentabilidade da moda não termina na passarela, mas no descarte.

O Direito da Moda, enquanto disciplina emergente e estratégica, deve servir como ponte entre a criação estética e a preservação da vida humana e ambiental.

O debate sobre o descarte responsável de roupas íntimas surge como consequência lógica da ampliação dessa visão: se a moda é uma questão pública, o resíduo que ela gera também é.

Panorama conceitual e fenômeno da economia circular na moda

A economia linear clássica (produzir, consumir, descartar), tem encontrado no setor têxtil (e da moda) forte resistência: altos volumes de geração de resíduos, sobras de produção, descarte de peças pós-consumo e baixa taxa de reciclagem.

No Brasil, estima-se que a maior parte dos resíduos têxteis ainda seja encaminhada a aterros ou lixões, sem triagem ou reaproveitamento adequado [3].

A economia circular propõe reinserir os materiais no ciclo produtivo, seja pela reutilização, reciclagem, re­entrada no processo, propondo a diminuindo da extração de recursos, reduzindo impactos ambientais e promovendo justiça social.

Contudo, o que pouco se discute é: quando a peça é íntima, usada, potencialmente contaminada biologicamente, e doada ou descartada informalmente — como deve ser tratada juridicamente essa etapa final do ciclo de vida?

Nesse sentido, se ancora no Fashion Law, ramo que conecta regulação, marcas, comércio, design, cadeia produtiva da moda e sustentabilidade, com o direito ambiental e o direito à saúde, ao tempo em que destaca a vulnerabilidade de populações que recebem doações sem triagem ou que suportam descarte irregular em seus territórios.

 O ordenamento jurídico brasileiro aplicável

Lei nº 12.305/2010 – PNRS

A Lei nº 12.305/2010 instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e representa o principal marco normativo sobre resíduos sólidos no Brasil [4].

A PNRS prevê, entre seus instrumentos: responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos (artigo 30), logística reversa (artigo 33), planos de resíduos (artigo 14 et seq.), destinação final ambientalmente adequada dos rejeitos (artigo 47) e o dever de reciclagem e reutilização (artigo 7º, I, II).

Entretanto, a mesma lei diz: “a PNRS não aborda o caso dos têxteis” em termos específicos — em especial para roupas, calçados e sobras de tecido.

Em suma, embora haja base normativa geral (gestão de resíduos, responsabilidade compartilhada, destinação) falta norma específica (ou regulamentação detalhada) para resíduos têxteis pós-consumo, e muito mais para o caso de resíduos têxteis biocontaminados (como roupas íntimas usadas).

Responsabilidade compartilhada e logística reversa

A análise técnico-jurídica do descarte de roupas íntimas usadas permite sua equiparação conceitual ao lixo hospitalar, dada a natureza biocontaminante desses resíduos. Assim como os resíduos provenientes de serviços de saúde, as peças íntimas em fim de uso podem conter fluidos corporais, fungos, bactérias e secreções capazes de transmitir doenças e contaminar o solo, a água e o ar quando descartadas inadequadamente.

A Resolução Conama nº 358/2005 e a RDC Anvisa nº 306/2004 classificam como resíduos infectantes todos os materiais que apresentem risco biológico à saúde humana e ao meio ambiente, enquadrando-se, por analogia, o resíduo têxtil íntimo que entra em contato direto com áreas corporais potencialmente contaminadas. Sob essa ótica, a ausência de regulamentação específica para o lixo têxtil íntimo representa uma omissão normativa grave, uma vez que esses resíduos exigem tratamento, coleta e destinação final controlada, similares aos aplicados aos resíduos hospitalares, garantindo-se, assim, a proteção sanitária e ambiental preconizada pelo ordenamento jurídico brasileiro.

A doutrina e especialistas em moda e sustentabilidade apontam que a PNRS, apesar de inovadora, “não aborda o caso dos têxteis” de forma específica, o que gera insegurança regulatória.

No âmbito das roupas íntimas usadas, que podem transportar fluidos corporais, micro-organismos, fungos, inclusive no contexto de doações e descarte informal, não existe norma específica que exija triagem, descontaminação, classificação ou destinação diferenciada.

Em resumo: temos (i) um risco real de saúde pública e meio ambiente; (ii) uma economia circular em expansão no setor da moda; (iii) mas ausência de regulação específica para esse tipo de resíduo, o que configura verdadeira lacuna jurídica.

O vazio legal é o campo fértil deixado pela Industria da Moda para o Estado resolver.

 Impactos ao meio ambiente, saúde pública e população vulnerável

Quando roupas íntimas usadas são descartadas sem triagem ou acabam em coleta informal ou em lixões urbanos, há impactos múltiplos:

  • Meio ambiente: tecidos tratados com corantes, aditivos, resíduos de micro-organismos ou fluidos corporais podem contaminar solos, águas pluviais, cursos d’água, além de gerar microfibras plásticas que alcançam ecossistemas aquáticos. Artigos especializados indicam que menos de 1 % das fibras têxteis são recicladas no Brasil.
  • Saúde pública: roupas íntimas usadas podem carregar fungos, ácaros, bactérias, vírus, além de fluidos orgânicos que, se descartados de maneira inadequada, potencialmente expõem trabalhadores de limpeza urbana, catadores e comunidades vulneráveis à contaminação. A literatura aponta que o descarte incorreto de resíduos têxteis implica efeitos prejudiciais à saúde humana, inclusive por queimadas ou incineração informal.
  • Desenvolvimento urbano e vulnerabilidade social: comunidades periféricas, favelas, assentamentos informais frequentemente recebem os impactos de resíduos mal geridos. A falta de triagem adequada ou políticas de recolhimento específicos para roupas íntimas usadas implica que catadores informais sejam expostos sem proteção, e que populações vulneráveis recebam doações sem condição sanitária. A economia circular, que poderia envolver reutilização de peças, fica limitada quando o risco de biocontaminação não é considerado.
  • Economia circular: a ausência de triagem ou regulamentação específica prejudica a valorização desses resíduos como matéria-prima para reutilização ou reciclagem. Roupas íntimas usadas que não passam por descontaminação não podem facilmente entrar em cadeia de reutilização, criando perdas de material e oportunidades de negócio para a moda circular.

Impactos e desafios na Amazônia, no Brasil e a oportunidade da COP 30

Na Amazônia, os desafios são ainda maiores: logística complexa, menor estrutura de gestão de resíduos, comunidades vulneráveis e grande presença de doações de roupas usadas oriundas de grandes centros ou países.

A lacuna jurídica sobre o descarte de roupas íntimas usadas aqui assume dimensão crítica, pois o agravamento dos riscos sanitários, ambientais e sociais ocorrem em territórios muito mais frágeis, diante da complexa biodiversidade do bioma, bem como da concentração municipal dos mais baixos índices de desenvolvimento humano e a vulnerabilidade política das populações tradicionais.

Diante disso, o Brasil, ao sediar a COP 30, tem oportunidade ímpar de colocar no centro da agenda global o tema da moda circular e descarte responsável de resíduos têxteis, incluindo o segmento negligenciado das roupas íntimas usadas, como parte de uma estratégia de sustentabilidade real, articulando moda, economia circular, saúde pública e preservação ambiental.

Proposições de regulação jurídica e política pública

Inevitável se faz, além de refletir sobre a ausência documental diretiva, o papel subjetivo dos estudos jurídicos, seja por via de proposições legislativas, seja por via da estrutura de políticas públicas sistemáticas e manobradas com o acervo regulamentar já existente, formular hipóteses de transformações socioambientais com efetividade possível:

  1. Criação de norma federal específica (ou regulamento da PNRS) que trate do descarte de roupas íntimas usadas como resíduo têxtil Biocontaminado, com definição clara de termos, e destinação final ou reincorporação à economia circular.
  2. Realização de campanhas de educação e sensibilização junto a consumidores, lojistas de moda e entidades de doação para que saibam da necessidade de descarte adequado ou recolhimento especializado.
  3. Incentivo e regulação para que brechós, plataformas de moda circular, ONGs e cooperativas de catadores não recebam roupa íntima usada, instruídas sobre o risco de contaminação e descarte responsável.
  4. Nos planos estaduais e municipais de gestão de resíduos sólidos (art. 14 PNRS), previsão de programas específicos para o descarte de roupas íntimas usadas, especialmente em regiões vulneráveis e na Amazônia, com recursos orçamentários e apoio técnico.
  5. Na agenda da COP 30, inclusão de meta global para moda circular que aborde descarte seguro de roupas íntimas usadas, com foco em países da Amazônia Brasileira, fomentando cooperação internacional, financiamento climático e pesquisa de risco sanitário.

Conclusão

Conclui-se que o descarte de roupas íntimas usadas é uma lacuna jurídica que ameaça o meio ambiente e a saúde pública. Urge criar regulação específica, debatida na COP 30, para garantir sustentabilidade e justiça social.

 


Referências

[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

[2] BRASIL. Lei n. º 12.305, de 2 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Brasília, DF, 2010.

[3] BRASIL. Decreto n. º 7.404, de 23 de dezembro de 2010. Regulamenta a PNRS.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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