Público da Cúpula dos Povos visita a exposição das arpilleras. Foto: Marcelo Aguilar / MAB

O saguão do Mirante do Rio, prédio na Universidade Federal do Pará (UFPA), que recebeu alguns dos principais debates da Cúpula dos Povos, em Belém, parecia pequeno demais para o que acontecia ali. Tecidos coloridos, retalhos de roupas salvos da água, fios grossos costurados à mão desenhavam rios marrons, casas submersas, barcos de resgate improvisados, fogueiras ilegais na Amazônia e pulmões ardendo.

Diante de cada arpillera – painéis têxteis de denúncia, nascidos no Chile de Pinochet – havia uma militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). E, diante delas, um fluxo incessante de visitantes que, ao olharem para os tecidos, recuavam, olhavam às vezes atônitos, às vezes encantados, e diziam, alguns: “Eu não sabia que era assim”.

Para quem produziu cada uma daquelas peças, a frase soa familiar. As arpilleras são isso: a possibilidade de mostrar o “assim”, o que é ser atingida, o que é sobreviver à água que enche a casa, ao descaso, à violência, ao medo de chuva, ao Estado que não chega, à barragem que cria desterrados. 

O nascimento das arpilleras após o desastre

Andréia Soares, assistente social e militante do MAB no Rio Grande do Sul, organizou três grupos de atingidas em Canoas , Matias Velho, Harmonia e Rio Branco, meses depois da enchente histórica de 2024 no estado.

Ela lembra do momento em que propôs às mulheres que transformassem em tecido aquilo que ainda não cabia em palavras: “A enchente passou, entre aspas, mas a vulnerabilidade ficou. A arpillera virou a forma delas denunciarem e, ao mesmo tempo, conseguirem finalmente chorar”, conta.

Foi apenas quatro ou cinco meses depois do desastre que os grupos começaram a se reunir. As mulheres falavam pouco a princípio. Algumas nunca haviam derramado uma lágrima desde o dia da enchente. Outras tinham medo de tempo fechado, medo do barulho da água, medo de que o próximo desastre chegasse antes do próximo amanhecer. Costurar virou uma espécie de permissão. 

Atingidas do Rio Grande do Sul presenciam, pela primeira vez, a obra produzida em uma exposição. Foto: Nivea Magno / MAB
Atingidas do Rio Grande do Sul presenciam, pela primeira vez, a obra produzida em uma exposição. Foto: Nivea Magno / MAB

Uma das arpilleras de Canoas retrata a enchente do ponto de vista do bairro Rio Branco. No tecido, uma chuva cinza cai sobre casas submersas. No canto, um barco tenta resgatar moradores. No outro, a geladeira de uma das mulheres boia, indo embora, uma cena real colada à retina de quem a viu. E há também a imagem do cavalo Caramelo, o animal símbolo da enchente que ganhou repercussão nacional ao ser resgatado do telhado de uma casa. “Teve mais repercussão que as próprias pessoas”, diz Andréia, com cuidado. “Não que o Caramelo não seja importante. Mas a nossa denúncia precisa falar dos humanos que continuam mais pobres do que já eram antes da enchente.”

“É a nossa voz, nua e crua”

Keysi Lopes, 28 anos, militante, atingida na Ilha Grande dos Marinheiros, diz que a arpillera é uma forma de “mostrar o que a gente vive diariamente e que ninguém vê”. Ela fala olhando para os visitantes que se aproximam, estudando cada ponto como se fosse possível ouvir um bairro inteiro dentro do tecido. “Eles ficam em choque”, referindo-se aos participantes da Cúpula dos Povos que passam pela exposição. 

Dá para entender. Um pedaço de pano cor de barro representa o rio marrom que invade casas há gerações. Um retalho azul simboliza a sirene que nunca toca. Há também portas, janelas, crianças no colo, alimentos perdidos, doenças de pele, noites sem sono. 

Fernanda, a costureira que descobriu um novo ofício de luta

Fernanda Maria Silva, 43 anos, moradora de São Miguel Paulista (São Paulo), descobriu as arpilleras seis anos atrás, ao conhecer o MAB. Ela já sabia costurar, mas nunca tinha feito uma peça como essa, até perceber que precisava representar as enchentes que tomam sua comunidade toda vez que a comporta da barragem é fechada.

Fernanda Maria, atingida de São Paulo, explica a arpillera para outros militantes na Cúpula dos Povos. Foto: Nivea Magno / MAB
Fernanda Maria, atingida de São Paulo, explica a arpillera para outros militantes na Cúpula dos Povos. Foto: Nivea Magno / MAB

“A água chega sem estar chovendo. Quando a gente vê, já está dentro de casa”. A gente perde tudo: cama, comida, e o psicológico vai junto.” A arpillera que ela trouxe a Belém foi feita uma semana depois da enchente de 23 de dezembro. “A gente tinha acabado de socorrer as pessoas. Ligava para a Defesa Civil, bombeiro, e demoravam horas para vir. Depois que a poeira baixou, ou melhor, a água, a gente se juntou pra montar”.

Ela sorri ao lembrar das visitas à exposição: “Homens perguntando a técnica! Isso é novo. Eles querem saber como cola, como costura. É muito bonito ver isso aqui, porque em outras exposições que acompanhei, os homens pouco se interessavam, mas os homens que vieram aqui não, eles gostaram, se interessaram”.

A Amazônia que respira 

Joelma da Silva Oliveira, pedagoga de Itaituba (PA), vive sob a ameaça do Complexo Hidrelétrico de São Luiz do Tapajós, que como projeto de barragem foi arquivado, mas pode voltar a qualquer momento. Em 2021, ela ajudou a criar uma arpillera sobre as queimadas na Amazônia durante a pandemia.

O tecido mostra um pulmão, o órgão mais afetado pelo vírus da Covid, e, ao mesmo tempo, a floresta sendo consumida pelo fogo. “É o pulmão do mundo. E estava queimando enquanto a gente também não conseguia respirar”, diz Joelma.

De um lado, a Amazônia devastada; do outro, a Amazônia que resiste com seus povos ribeirinhos e tradicionais. No meio, o olhar do capital. As oficinas onde Joelma trabalha com mulheres amazônicas são tão densas quanto o tema:

“São coisas muito pesadas. Violência, crise climática, ameaça de obra. Muitas mulheres desencadeiam depressão, começam a falar de agressões que nunca contaram. A arpillera carrega tudo isso. ”Pergunto como ela se sente ao costurar. “É um misto de emoções, mas também é alívio”, responde Joelma.

Joelma, atingida do Pará, reconta as histórias da Amazônia na exposição. Foto: Nivea Magno / MAB
Joelma, atingida do Pará, reconta as histórias da Amazônia na exposição. Foto: Nivea Magno / MAB

Tecido como denúncia, cura e organização

As arpilleras mostram o que a água esconde, o que a fumaça cobre, o que a barragem silencia. Mostram, principalmente, o que as mulheres insistem em revelar.

Para o MAB, as oficinas têm sido não só ferramenta política, mas espaço de cuidado. Em Canoas (RS), algumas mulheres só conseguiram chorar diante do tecido. Em São Paulo, as costureiras do coletivo descobriram que podiam transformar a lama em símbolo. No Tapajós (PA), a arpillera se tornou lugar para falar sobre violência doméstica, depressão e medo. Tudo aquilo que pouco aparece no noticiário.

Na Cúpula dos Povos, em Belém, as visitantes e os visitantes param diante dos painéis, silenciam, respiram fundo e, muitas vezes, não conseguem dizer nada. As mulheres sorriem, acostumadas. Ali, a palavra é ponto de costura.

Arpillera costurada para a Cúpula dos Povos. Foto: Marcelo Aguilar / MAB
Arpillera costurada para a Cúpula dos Povos. Foto: Marcelo Aguilar / MAB

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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