Existe uma horda de haters de IA na Internet, vão dos luditas que não aceitam nada novo, aos pseudo-ecochatos que acham que água usada para refrigerar datacentres é desintegrada. Também acham que só IA usa datacentres, e houve até um que veio me explicar que ninguém quer datacentres, por isso não constroem nos EUA, só no terceiro mundo. Quando você parar de rir eu continuo…

Claramente AI Slop (Crédito: Gold/Miller Productions/Wayans Bros. Entertainment/Brad Grey Pictures/Paramount)
Um argumento dos haters de IA, admito, é irrefutável: A qualidade do material criado é muito baixa. Até hoje vemos mãos cheias de dedos, e em subreditorias com r/StableDiffusion, é possível acreditar que 99% da IA do planeta é usada para criar imagens de japinhas peitudas de anime. Há algum incentivo oculto em criar a imagem e postar imediatamente, com zero escrutínio, e isso não é culpa da IA.
Outro dia vi um reels no Threads, aquela pocilga, com um título exaltando uma moça por pilotar um Airbus A360 (sic!). Na foto, a piloto do lado da fuselagem, com A380 escrito em letras garrafais. Ninguém viu, ninguém percebeu, ninguém se importa, renderiza, sobe pras redes, parte pro próximo vídeo.
É tudo conteúdo descartável, de consumo imediato, é a filosofia do “pro que é tá bom”.
A IA não é responsável por 90% do conteúdo produzido com ela ser lixo. 90% de toda a produção intelectual humana É lixo.
Existe um conceito interessante chamado Lei de Pareto, segundo o qual “80% dos resultados vêm de 20% das causas.” – por exemplo: 80% do faturamento de um restaurante vem de 20% dos pratos. 80% do engajamento nas redes sociais vem de 20% dos posts.
Claro que não é sempre 80/20, mas o Princípio de Pareto aponta para uma desproporcionalidade, que às vezes é extrema. 24% das visualizações no Youtube vêm de 0,0001% dos canais ativos.


Existe um sub-sub-sub-gênero na Amazon envolvendo dinossauros em romances gays. Nenhum deles fruto de IA (Crédito: reprodução Internet)
Em produção de séries de TV, algo entre 5000 e 10000 roteiros são apresentados todo ano. Desses, entre 1% e 4% são escolhidos para produzir episódios-pilotos. 20% dos pilotos produzidos viram séries, e dessas, só 20% são renovadas para a segunda temporada.
E aqui, de novo, a Lei de Pareto é cruel: Segundo dados da Writers Guild of America (WGA) – Não confundir com a Film Actors Guild (FAG), dos 12000 membros em 2023, somente 40% receberam algum dinheiro vindo de TV ou cinema. E desses, apenas algo entre 5% e 20% vivem profissionalmente de roteiros.
Em teoria isso não deveria acontecer. Nunca foi tão fácil escrever e divulgar seu trabalho. Andy Weir publicou o magnífico Perdido em Marte em seu blog, de graça, com o boca-a-boca foi convencido e publicar na Amazon, vendendo por US$0,99 em 2011. Em 2012 a Crown Publishing descobriu o livro, e ofereceu um adiantamento de U$100 mil pelos direitos de impressão do livro. Hoje Andy Weir tem um patrimônio de US$50 milhões, ou 114 mil toneladas de batatas.
Onde estão os outros Andy Weirs?
Eu, em minha quase virginal ingenuidade, achei que a Internet seria a Renascença da Palavra Escrita, com todo mundo lendo e escrevendo cada vez mais e melhor. Hoje minha irmã manda áudio de quatro palavras. As pessoas nem legendam mais seus vídeos, usam a função automática do TikTok ou do Canvas, mesmo que isso carburador papiro o reconhecimento.
A proliferação de câmeras também não gerou hordas de novos Spielbergs (admito que criou um bom número de Buttmans), a facilidade de gravar um álbum inteiro em casa, mixar e produzir em um PC doméstico criou um imenso número de novos músicos, mas não um número desproporcional de BONS músicos.
É um paradoxo, temos ferramentas que permitem a criação de conteúdo com qualidade profissional, mas o conteúdo que se destaca não aumenta de forma desproporcional, mesmo que qualquer criança hoje produza um vídeo com 10x mais qualidade que os vídeos iniciais do Justin Bieber, que mesmo filmados por uma batata segurada pelo Michael J. Fox bêbado durante um terremoto, foram o suficiente para deslanchar sua carreira.
O que acontece aqui é que a democratização de acesso aos meios de produção (nossa, soei como um comunista aqui) não está correlacionada com a curva de talento entre a população.
Digamos que entre 10 pessoas, 20% têm talento para cantar, mas só uma dessas pessoas tem acesso aos recursos para produzir um álbum. Se você der acesso para 100% das pessoas, você termina com 2 álbuns bons e 8 lixos. O acesso à tecnologia de criação de conteúdo aumenta desproporcionalmente o ruído.
E ruído, crianças, é o problema aqui. No YouTube temos 2,7 bilhões de usuários ativos (ui!), desses 69 milhões são criadores, com 115 milhões de canais. Dos criadores, apenas 3% conseguem monetizar seus canais.
São subidos 78 milhões de vídeos por mês, esses vídeos competem pelos olhos dos 2,7 bilhões de usuários, mas a quase totalidade está enterrada sob toneladas de ruído. Na verdade 99,9% desses vídeos são o ruído.
Aqui entra a AI
Essa enxurrada de vídeos ruins não depende de IA, mas ela é vista como a salvadora da pátria, o mesmo cansado argumento de que a IA / Blogs / Internet / YouTube / CapCut / Premiere / SoundForge / Canvas / TekPix / Super-8 / Sony Mavica / VHS / Impressão por Tipos Móveis / Pintura / Papiro / Tábua de Argila vai criar acesso para que pessoas talentosas divulguem seu trabalho.
Tudo isso são ferramentas, não caixas mágicas onde você aperta um botão e tudo se resolve. Se você escrever seu artigo e não revisar, nenhum Word com Copilot do mundo vai apontar que você escreveu AI ao invés de IA no subtítulo ali atrás.
O problema é que como as ferramentas estão cada vez mais fáceis de usar, elas são usadas agora por gente que não tinha paciência de usar as ferramentas antigas. Gente… preguiçosa. Sumiram as legendas de 5 linhas feitas por otakus levemente autistas desesperadamente tentando explicar um conceito obscuro cultural, agora é o que o Whisper entendeu, e o povo não se dá ao trabalho de LER a legenda para ver se está tudo OK.
Temos para todo lado posts com imagens feitas com IA, onde as pessoas estão distorcidas, as imagens não fazem sentido, ou são apenas ruins, mas a culpa não é da IA.
Um bom exemplo é a campanha de fim de ano da Coca-Cola, que segundo o Wall Street Journal, levou um mês e ocupou 100 pessoas.
É um filme fofinho, como sempre. Não é lá muito criativo, mas é um filme… seguro. É feito para não ofender ninguém, então carece de tempero. Não vou chegar ao nível dos haters de IA que dizem que o filme não tem alma. Tem, só falta mojo.
Diz a Coca-Cola que criaram 70000 vídeos para conseguir as imagens do comercial.
Aí o povo olhou com mais atenção, e há problemas sérios de continuidade. Eles não conseguem manter consistência (reconhecidamente um dos maiores calcanhares de Aquiles da IA) entre as cenas. Há DEZ caminhões diferentes, alguns sequer fazem sentido mecanicamente.


Alguém compilou as variações dos caminhões. Sério (Crédito: Reprodução Internet)
A culpa é da IA?
Segundo o WSJ, cinco especialistas de IA foram encarregados de criar os prompts e selecionar os vídeos. Imagino que esses especialistas usem , pois seus prompts são um lixo.
Quanto mais detalhado for seu prompt, menos chance a IA tem de alucinar. Não é colocando “Caminhão da Coca-Cola” que você obterá algo consistente, já se usar um prompt assim:

Já consegue resultados bem mais consistentes.

Eu aceito um “pro que é tá bom” pra um estagiário que precisa fazer um post descartável no Instagram da empresa, só para marcar presença, e mete uma mulher de 6 dedos segurando uma esmerilhadeira ou algo assim, mas a COCA-COLA?
Será que o Sangue Negro do Capitalismo não tem preocupações com qualidade? Ninguém viu, ninguém notou, ninguém revisou? Por quantas mãos e olhos esse filme passou antes de ser aprovado?
Isso demonstra que ninguém liga, e é algo recorrente. Quem mais usa IA é quem menos se importa com a qualidade do trabalho, e o resultado é mais lixo, mais ruído, como este jornaleiro do Paquistão, que não se preocupou nem em ler o artigo que ele pediu pro ChatGPT escrever.


Mau, Sapão, mau, Sapão (Crédito: Reprodução Internet)
A esperança no Inferno
A IA é inocente aqui, ela é a ferramenta, ela apenas dá corda suficiente pra você se enforcar umas cinco vezes, mas você pode usar essa corda para -sei lá- fazer um barco (não sou engenheiro). A Lei de Pareto continua valendo aqui: 80% de quem usa IA usa por ser preguiçoso, e não liga pra qualidade do trabalho, mas 20% (de novo, não são valores absolutos) usa para produzir mais e melhor, para verificar e testar suas hipóteses, para pesquisar e aprender.
Usar a IA é como ter um sabre de luz. Você pode virar um Jedi ou pode (mais provavelmente) arrancar seu nariz fora. Eu devo dizer que a IA me salvou mais de uma vez. Neste texto mesmo, cheguei com a firme convicção de que mais acesso não aumenta o número de talentos, mas fui convencido pelo Grok do contrário, com fontes e números. Não é a primeira vez.
Tem Culpa Nós?
Já dizia o Bardo, a culpa não está nas estrelas, mas em nós mesmos. No afã de reforçar nossas opiniões e vieses, replicamos conteúdo sem o menor critério, às vezes mais óbvio que o A360 que era um A380. No auge do arranca-rabo entre Israel e Hamas, inúmeras imagens foram criadas e espalhadas, tentando criar simpatia e promover as causas, como esta:

Sim, não sei se é água do rio ou do mar, mas pelo visto crianças palestinas agora têm seis dedos. IA óbvia, não? Bem, se você procurar entre os posts que divulgaram a imagem, um alarmante número de pessoas acreditou piamente em sua veracidade.
Quando os EUA polpificaram as instalações nucleares do Irã, milhares de imagens de IA tentaram forçar a Narrativa de que o Irã estava se defendendo. Incluindo essa bobagem aqui, com o maior F-35 do Universo. E adivinhe: O povo pró-Irã compartilhou do mesmo jeito.

Ontem, no Threads (sim, eu tenho problemas) ums cidad provou que IA era “inútil”, ao comparar uma imagem gerada via IA com uma ilustração feita por um humano. Sendo que a imagem de IA foi criada com um prompt de OITO palavras.

IA não é mágica, IA é ferramenta. Ninguém joga um pedaço de alumínio em uma CNC e digita “faz uma escultura aí”. Com um prompt mais detalhado, conseguimos resultados melhores. E essa foi a PRIMEIRA tentativa. (prompt no ALT da imagem)

Conclusão
A IA continuará produzindo Slop, conteúdo de baixa qualidade, pois é o que consumimos. Quem for contra, é só não repassar, não engajar. Trate IA como você trata qualquer ferramenta: Ela só é relevante para quem usa. Para nós o que vale é o conteúdo.
Ignore conteúdo ruim, engaje e promova conteúdo bom. Assim, IA ou não, o material de qualidade vai eventualmente se sobrepor ao ruído. Não caia na falácia “Se é IA é ruim”, falaram isso de toda inovação tecnológica. Se é ruim é ruim, se é bom, é bom.
De resto, o vídeo que mais me fez rir até agora em 2025 é 100% IA, com a ferramenta usada para executar uma idéia absurda e deliciosa.
