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“Disse que estava bem, mas não estava.” Al Gore começa assim sua fala para uma plateia que lotava o salão de um grande hotel na região da av. Paulista, em São Paulo, contando a história de um fazendeiro do Tennessee que, após um acidente, respondeu ao policial que tudo era bem apenas para evitar levar o mesmo tiro de misericórdia dado à sua ferida de vaca. O riso breve da plateia cedeu lugar ao silêncio quando ele completou: “É o que estamos fazendo com o planeta. Dizemos que está tudo bem, mas não está.”
Foi a partir dessa metáfora rural, simples e brutal, que o ex-vice-presidente dos Estados Unidos contribuiu uma das análises climáticas mais duras já apresentadas no país. “Estamos em um estágio crítico e frágil da transição para energia limpa”, disse. “O tempo que resta é curto, mas ainda suficiente para agir.”
Prêmio Nobel da Paz e autor de “Uma verdade inconveniente”, Al Gore se tornou o principal articulador entre ciência, economia e política climática desde os anos 1990. Sua voz mantém peso em negociações internacionais e na economia verde. Em 8 de novembro, no encerramento do Climate Implementation Summit, seu público era formado por empresários, investidores, líderes e representantes de organizações internacionais. O evento, organizado pela Climate Action, Converge Capital e Instituto Clima e Sociedade (iCS), foi desenhado para unir o setor privado e governos em torno da execução de metas concretas, alinhados à presidência brasileira da COP30 e ao Roteiro Baku-a-Belém.
Dez anos após o Acordo de Paris, o balanço apresentado por Gore foi direto a um ponto para o qual a ciência tem dado respostas. As políticas climáticas em vigor reduziram o aquecimento projetado até o fim do século de 3,6 °C para 2,8 °C, o que representa um avanço real, mas insuficiente.
“Apesar das soluções disponíveis, continuamos tratando o céu como um esgoto aberto”, afirmou Al Gore.
Todos os dias, a humanidade 175 milhões de toneladas de gases de efeito estufa na atmosfera, quantidade equivalente à energia liberada por 750 mil bombas atômicas. O impacto já se traduz em colapso econômico e social.
O calor extremo prejudica a produtividade mundial em 639 bilhões de horas de trabalho, o que corresponde a US$ 1 trilhão ou 1% do PIB global. A projeção para os próximos 50 anos indica um prejuízo acumulado de US$ 178 trilhões se nada for feito. No cenário oposto, a adoção plena de tecnologias sustentáveis geraria um ganho líquido de US$ 43 trilhões. “Agir pelo clima é uma necessidade econômica, não um ato de generosidade ambiental.”
O Brasil, afirmou Gore, é um dos grandes e importantes países onde a crise climática também se manifesta. O ano de 2024 foi o mais quente da série histórica. Desde a década de 1960, o número médio de dias de onda de calor subiu de sete para 52.
As enchentes no Sul, a seca na Amazônia e as tragédias em áreas urbanas aumentaram-se, segundo ele, “a nova geografia da vulnerabilidade”. Ainda assim, o país reúne vantagens únicas para liderar a transição: matriz elétrica limpa, potencial agrícola e florestal, biodiversidade e capacidade científica. “Tenho orgulho de estar em negócios aqui. Esta é minha terceira visita ao Brasil neste ano, e seguirei para Belém nos próximos dias”disse, citando o escritório de sua empresa em São Paulo.
A conferência sustentou a tese de que o setor privado é o motor da solução climática. Empresas, fundos de investimento e bancos concentram 75% dos transportes globais em energia renovável. Para Al Gore, a transição deixou de ser tema de diplomacia e se tornou o centro da política industrial do século 21. “O caminho errado e fácil é continuar queimando combustíveis fósseis. O certo e difícil é substituí-los rapidamente por soluções sustentáveis, que são mais baratas, mais limpas e que geram mais empregos.”
Há dados disponíveis que sustentam essa afirmação de Al Gore. Em 2023, 93% da nova capacidade de geração elétrica instalada no mundo veio de fontes renováveis, proporção que deve chegar a 95% nos próximos anos, segundo a Agência Internacional de Energia (IEA). A energia solar e as baterias são as tecnologias de expansão mais rápida e de menor custo já registradas. No transporte, 30% dos carros vendidos no mundo em setembro de 2024 eram elétricos; na China, 58%; na Noruega, 98,8%.
O impacto social da transição também foi destacado por ele como fundamental. Estudos da Universidade de Oxford indicam que os investimentos sustentáveis geram três vezes mais empregos do que os destinados à economia fóssil.
“A descarbonização é o maior programa de geração de empregos de qualidade da história. A economia verde é o novo motor de crescimento.”
A fala de Al Gore avançou também para o terreno da política internacional, um tema do que ele raramente deixa passar. “O elefante na sala continua sendo o papel dos Estados Unidos”, disse. Ele criticou a retirada do país do Acordo de Paris, mas lembrou que, mesmo durante o período de retração, houve uma transição contínua em seu país. A geração solar dobrou, os veículos elétricos dobraram e o uso de combustíveis fósseis caiu 20%. “Quando um país sai, 195 menos 1 não é igual a zero. O mundo não pode parar.”
Para garantir coerência e transparência nas políticas, Gore destacou a importância da mensuração em tempo real das emissões. O Climate TRACE, coalizão de 165 organizações lideradas por ele, já rastreia 745 milhões de fontes emissoras em todo o planeta. A ferramenta permite identificar onde e como reduzir as emissões com o menor custo e maior impacto. “Só se pode gerenciar o que se mede.”
Nos minutos finais de sua fala, o discurso voltou ao ponto de partida: o risco de fingir que tudo vai bem. “Temos urgência, mas também agência. Podemos fazer isso.” Segundo ele, novas evidências científicas mostram que ao atingir emissões líquidas zero o aumento de temperatura cessa quase imediatamente, com defasagem de três a cinco anos. “Isso significa que podemos estabilizar o sistema climático ainda nesta geração.”
O encerramento foi silencioso por alguns segundos, antes dos aplausos de uma placa que se manifestou para concordar com Al Gore. “A vontade política é um recurso renovável”, disse ele, deixando claro que o impasse atual não é tecnológico, é de decisão. O planeta pode se recuperar, desde que pare de dizer que está tudo bem.
