A perfuração irregular e desordenada de poços artesianos e tubulares traz riscos de contaminação aos aquíferos que abastecem o Distrito Federal. De acordo com a Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do DF (Adasa), existem 9.266 estruturas de captação com outorga emitida na capital e, entre 2021 e 2025, foram identificados 878 poços irregulares, 236 deles em Brazlândia, região com mais casos. Mas a agência informa que é impossível determinar o número exato de pontos clandestinos de extração.

Márcio Costa Abreu, pesquisador do Serviço Geológico Brasileiro (SGB), destaca que o principal risco da perfuração irregular é a contaminação das águas subterrâneas. “Um poço mal construído pode conectar diferentes camadas — o aquífero poroso e o fraturado — e permitir que contaminantes desçam da superfície para níveis mais profundos. Quando isso ocorre, a poluição pode se espalhar e atingir outras áreas por meio das fraturas das rochas”, explica.

Segundo ele, apesar de não haver indícios de contaminação generalizada no DF, locais onde o lençol é mais raso e o material geológico é mais permeável têm maior risco. “De acordo com o mapa de vulnerabilidade natural à contaminação, elaborado em parceria entre o SGB e a Adasa, as regiões de Taguatinga, Riacho Fundo, Núcleo Bandeirante, Planaltina e Lago Norte estão entre as que apresentam risco alto a extremo de contaminação, tanto pela geologia quanto pela presença de poços irregulares”, ressalta.

Nas áreas urbanas, acrescenta, as principais fontes são postos de combustíveis, vazamentos em redes de abastecimento, fossas sépticas e resíduos industriais. Já nas zonas rurais, os contaminantes mais comuns vêm de fertilizantes, corretivos de solo e agrotóxicos usados na agricultura.


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Um poço mal construído pode conectar diferentes camadas — o aquífero poroso e o fraturado — e permitir que contaminantes desçam da superfície para níveis mais profundos
(foto: Editoria de arte/Imagens SGB)

Auditoria

Uma auditoria do Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF), realizada em 2018, apontou “insegurança no controle da disponibilidade hídrica e fragilidade na fiscalização das outorgas, comprometendo a gestão eficiente dos recursos hídricos do DF”. À época, o relatório mostrou falhas no monitoramento, no controle, na transparência e na fiscalização das concessões, determinando uma série de medidas à Adasa para sanar os problemas.   

Passados sete anos, apenas 21,4% das deliberações contidas no relatório final do Exame do Controle de Outorgas de Uso de Recursos Hídricos foram integralmente implementadas pela agência. Outros 35,7% foram parcialmente cumpridas e 35,7% ainda não foram executadas, segundo o TCDF. Entre as principais irregularidades, estavam a concessão de outorgas sem respeitar a disponibilidade hídrica local; fiscalização insuficiente do cumprimento das outorgas; e ineficiência na detecção de captações irregulares.

Em um relatório de monitoramento, de 2024, o Tribunal de Contas reconheceu alguns avanços por parte da Adasa, como o lançamento do Mapa de Áreas Irrigadas do DF, que identifica regiões com uso intensivo de água; realização de campanhas de regularização em parceria com a Emater-DF; criação do Cadastro de Agentes Perfuradores de Poços; disponibilização pública parcial do Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos (SIRH-DF); e a edição da Resolução nº 11/2019, que definiu regras de monitoramento volumétrico dos poços.

Apesar disso, persistiam problemas, como a indefinição das vazões outorgáveis de corpos hídricos superficiais com base em dados atualizados; falta de periodicidade definida para revisão das vazões subterrâneas; limitação do controle social, pelo fato de o SIRH-DF não permitir extração pública de dados de outorgas; falta de um sistema de informações para registro e acompanhamento da fiscalização; e de rotina para tratar outorgas vencidas e identificar captações irregulares. Atualmente, o processo está em análise pelo corpo técnico do tribunal. 

Medidas

Em nota, a Adasa informou que prestou esclarecimentos, participou de entrevistas e enviou respostas formais a todos os questionamentos feitos pelo TCDF. Segundo a agência, não há indícios de contaminação generalizada nos aquíferos do Distrito Federal e o monitoramento das águas subterrâneas é feito por meio de uma rede de 42 estações, “que permite acompanhar indicadores de qualidade e quantidade dos principais domínios aquíferos da região”.

O órgão destacou que, desde a realização da auditoria, foram implementadas melhorias como a atualização contínua do Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos e o lançamento do sistema eletrônico de outorgas prévias para uso de águas subterrâneas, disponível no site e no aplicativo Adasa Digital. “Também foi criado o Cadastro de Agentes Perfuradores de Poços, destinado a coibir perfurações irregulares e aprimorar o controle sobre as atividades do setor.”

Sobre o acompanhamento do uso da água, a Adasa explicou que os sistemas de monitoramento automatizado, com leitura remota de vazões, estão em operação apenas para grandes usuários — agrícolas, industriais e comerciais —, devido ao alto custo desses equipamentos, com autuações sempre que irregularidades são comprovadas. Para os demais casos, é exigido o registro manual dos volumes captados e o acompanhamento das retiradas. Em relação às outorgas vencidas ou inativas, a agência disse que realiza controle regular e aplica sanções em caso de uso indevido.

Questionada sobre quando deve cumprir todas as determinações da auditoria realizada pelo TCDF, em 2018, a Adasa não se manifestou até o fechamento desta reportagem.

O que diz a lei

Perfurar um poço no Distrito Federal exige autorização prévia (outorga) da Adasa e, quando couber, licenciamento ambiental junto ao Ibram. A regra vale para captações novas e para a regularização de poços já existentes. Para usos maiores (como irrigação, indústrias ou condomínios), a agência pode exigir estudo hidrogeológico e medição de volumes.

Somente empresas habilitadas podem perfurar, testar, fechar ou recuperar poços, conforme a Resolução Adasa 001/2022, que criou o Cadastro de Agentes Perfuradores de Poços. Já a Resolução 16/2018 define as disponibilidades hídricas subterrâneas por bacia, limitando o que pode ser outorgado para evitar superexploração dos aquíferos (especialmente em áreas de recarga e zonas vulneráveis). Se o Ibram identificar área contaminada, a agência pode restringir ou suspender captações locais.

Quem perfura ou opera sem outorga, fora dos limites autorizados ou sem agente cadastrado está sujeito a multa, embargo e lacre do poço, além da suspensão ou revogação da outorga, quando houver. Em caso de risco ambiental, a agência pode determinar paralisação imediata, apreensão de equipamentos e execução de medidas corretivas (como tamponamento/selagem e recuperação da área).

A reincidência e o dano à saúde e ao meio ambiente agravam as penalidades. Descumprimentos podem gerar responsabilização civil e criminal, inclusive, com comunicação ao Ministério Público.

Saiba mais

Tecnicamente, poço artesiano é aquele em que a água sobe naturalmente até a superfície, sem necessidade de bombeamento. O poço tubular, que é o mais comum no Distrito Federal, exige o uso de bomba para elevar a água. Apesar de o termo “artesiano” ser o mais popular, quase todos os poços do DF são, na verdade, tubulares.

 

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Ibram monitora áreas contaminadas

O Instituto Brasília Ambiental (Ibram) mantém um mapa de áreas contaminadas do DF. De acordo com o órgão, atualmente existem 131 pontos sob gerenciamento, em diferentes estágios de investigação e remediação ambiental. Desses, 95 são Áreas Contaminadas sob Investigação (ACI) e quatro são classificados como Áreas Contaminadas com Risco Confirmado (ACRi) — dois em Taguatinga, um no Núcleo Bandeirante e um no Lago Sul, todos relacionados ao vazamento de hidrocarbionetos de postos de combustíveis. Nessas ACRis, há necessidade de restrição do uso das águas subterrâneas até a conclusão dos planos de descontaminação.

Existem, ainda, nove Áreas Contaminadas em Processo de Remediação (ACRe), a maioria também relacionada a postos de combustíveis, com plumas de poluição identificadas e monitoradas por meio de estudos técnicos, em Ceilândia, Taguatinga, Samambaia, SCIA, Guará, Asa Sul, Lago Norte e
Jardins Mangueiral.

Apesar disso, instituto reforçou que não há evidências de contaminação cruzada entre aquíferos nem de comprometimento dos mananciais utilizados para abastecimento público. “As ocorrências de poluição, em sua maioria, são pontuais e ligadas a antigos postos de abastecimento, construídos antes da adoção das tecnologias modernas de vedação e detecção de vazamentos em tanques e tubulações subterrâneas”, enfatizou o órgão.

Essas contaminações, de acordo com o Ibram, costumam gerar plumas de pequena extensão, confinadas a um único aquífero. “Quando gerenciadas corretamente, não representam risco de migração vertical — ou seja, de propagação entre diferentes camadas de aquíferos. O monitoramento inclui delimitação das áreas afetadas, análise da magnitude da poluição e elaboração de mapas de restrição de uso de recursos hídricos subterrâneos, a fim de impedir novas captações nas zonas sob influência da contaminação”, finalizou o instituto.

Duas perguntas para

Márcio Costa Abreu, pesquisador do Serviço Geológico Brasileiro e uma dos autores do Mapa Hidrogeológico para Gerenciamento e Proteção das Águas Subterrâneas do Distrito Federal, publicado em 2023, em parceria com a Adasa.

Quais aquíferos estão sob o território do Distrito Federal?

O Distrito Federal está assentado sobre dois grandes tipos de aquíferos: os porosos e os fraturados. Nos aquíferos porosos, a água se movimenta e se acumula nos espaços entre os grãos dos sedimentos — como areia e cascalho —, ou seja, nos poros do solo. Já os aquíferos fraturados são formados por rochas compactas, onde a água se infiltra e circula através de fraturas e fissuras naturais. Entre as formações geológicas que armazenam água subterrânea no DF, destacam-se os aquíferos Paranoá, Bambuí e Canastra, cada um com composição e comportamento diferentes. Em áreas mais planas, é comum precisar perfurar 50 a 60 metros para atingir esses aquíferos fraturados. Em locais onde o relevo tem um declive mais acentuado, essa profundidade tende a ser menor.

Como ocorre o processo de infiltração da água e da contaminação?

A infiltração da água da chuva começa pela camada mais superficial — o aquífero poroso — e, a partir daí, pode alcançar o aquífero fraturado. Quando há contaminação na superfície, ela atinge primeiro o aquífero mais raso. Se o poço for mal construído e não houver isolamento adequado, o contaminante pode atravessar essa camada e atingir o aquífero inferior. Em teroria, é possível que a contaminação se espalhe de uma região para outra, especialmente se houver interconexão entre diferentes aquíferos fraturados. Mas esse tipo de análise requer estudos locais detalhados, pois a dinâmica subterrânea varia muito entre regiões. No caso do DF, não há indícios de contaminação generalizada — apenas situações pontuais que precisam de monitoramento constante.

  • Um poço mal construído pode conectar diferentes camadas — o aquífero poroso e o fraturado — e permitir que contaminantes desçam da superfície para níveis mais profundos

    Um poço mal construído pode conectar diferentes camadas — o aquífero poroso e o fraturado — e permitir que contaminantes desçam da superfície para níveis mais profundos
    Foto: Editoria de arte/Imagens SGB


  • Selo-COP30

    Selo-COP30
    Foto: Valdo Virgo


  • Cabeça Meio Ambiente Direito à água

    Cabeça Meio Ambiente Direito à água
    Foto: Caio Gomez


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By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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