Por Voltaire Marenzi. Advogado e Professor.
O seguro de vida, em sua modalidade tradicional, tem por objeto a garantia do pagamento de indenização em caso de morte do segurado ou de invalidez permanente decorrente exclusivamente de acidente pessoal, conforme as condições gerais da apólice.
Esta assertiva se infere da leitura do artigo 118 do novo diploma legal, Lei número 15.040, de 09.12.2024, que começará a viger a partir de 11 de dezembro de 2025.
Nesta novel lei, ao comentar o seu artigo 112 que trata Dos Seguros Sobre A Vida e a Integridade Física, afirmei que “é princípio assente que a vida tem um valor inestimável. Pois, contrariamente ao que afirmava Portalis, em escólios hauridos por Moitinho de Almeida, na asserção de Dupuich, em seu Traité de l’assurances sur la vie, os seguros de vida não são odiosos e pode obstar-se a que se tornem perigosos”.[1]
De outro giro, a invalidez permanente por doença profissional, não prevista neste arcabouço jurídico, embora produza efeitos similares ao acidente sob o ponto de vista previdenciário, não se enquadra no conceito de “acidente pessoal” para fins securitários, uma vez que decorre de causa lenta, progressiva e não súbita, típica das enfermidades relacionadas ao trabalho.
Embora o conceito de acidente pessoal não conste expressamente dentro deste capítulo, ele se encontra subsumido no artigo 121 quando acentua que “a seguradora não se exime do pagamento do capital segurado, ainda que previsto contratualmente, quando a morte ou a incapacidade decorrer do trabalho, da prestação de serviços militares, de atos humanitários, da utilização de meio de transporte arriscado ou da prática desportiva”.
Pois bem. Não se pode negar que a utilização de meio de transporte arriscado enseja a possibilidade real de que ocorra, em decorrência desta atividade, um acidente pessoal a quem dele se arvorou como praticante deste transporte.
Através de um transporte arriscado não há dúvida de que “o princípio da causa adequada do risco” e da “teoria da imprevisão” influenciaram a forma de exclusões de cobertura que deveriam ser analisadas, segundo a doutrina francesa, já que não se pode, em tese, inserir exclusões que retirem a proteção esperada pelo segurado.[2]
Ademais, nos termos das normas da Superintendência de Seguros Privados – SUSEP – e das condições padronizadas de seguros de pessoas, considera-se acidente pessoal o evento exclusivo, externo, súbito, involuntário e violento que cause lesão física, diretamente responsável pela morte ou invalidez do segurado. Por outro lado, as doenças de natureza ocupacional — ainda que equiparadas a acidentes de trabalho pela legislação previdenciária (art. 20, §1º, da Lei nº 8.213/91) — não geram direito à indenização securitária privada, salvo previsão expressa em cláusula contratual ampliativa.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente afirmado que a doença profissional não se confunde com o acidente pessoal, afastando a obrigação de indenizar quando o contrato restringe a cobertura à invalidez acidental. (REsp 1.423.097/SC, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 12.08.2014).
Dessa forma, na ausência de cláusula específica que inclua a invalidez por doença profissional entre os riscos cobertos, a seguradora não responde pela indenização, devendo prevalecer o princípio da interpretação restritiva dos contratos de seguro, nos termos ainda vigentes do artigo 757 do Código Civil.
Valendo-me, ao azo, do que escreveu José Eduardo Martins Cardozo, em obra coletiva lançada no mês de outubro deste ano, por ocasião do Seminário do IBDS, realizado em São Paulo, do qual participei, escreveu o mencionado doutrinador que em face da sua indiscutível irretroatividade, a discussão sobre os seus eventuais problemas intertemporais (refere-se a nova lei do contrato de seguro), limitar-se-á à sua incidência sobre os facta pendentia, ou seja, sobre a eventual projeção dos seus efeitos imediatos e futuros em relação a contratos anteriormente pactuados e que ainda estejam em curso no início da sua vigência”.[3]
Pois bem. Em decisão proferida em 29 e publicada em 30 de setembro de 2025, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial, sob número 2.197.891-MS, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que guardou a seguinte ementa:
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE COBRANÇA. SEGURO DE VIDA. INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. INVALIDEZ PERMANENTE POR ACIDENTE (IPA). DOENÇA PROFISSIONAL. MOLÉSTIA CAUSADORA DA INCAPACIDADE. EQUIPARAÇÃO A ACIDENTE DE TRABALHO. IMPOSSIBILIDADE.
1. A cobertura de Invalidez Permanente por Acidente (IPA) garante o pagamento de uma indenização relativa à perda, à redução ou à impotência funcional definitiva, total ou parcial, de um membro ou órgão por lesão física, causada por acidente pessoal coberto (art.11 da Circular/Susep nº 302/2005; Resolução/CNSP nº 117/2004 e art. 2º, I, da Resolução/CNSP nº 439/2022).
2. Por expressa previsão legal e contratual, a cobertura por Invalidez Permanente Total ou Parcial por Acidente (IPA) não abrange as doenças, inclusive as classificadas como profissionais, ainda quando consideradas acidentes do trabalho pela legislação previdenciária, a exemplo daquelas decorrentes ou não de microtraumas de repetição. Precedentes.
3. Na hipótese, a invalidez da autora (doença ocupacional) não se enquadra na definição securitária de Invalidez por Acidente (IPA) e não se confunde com a invalidez previdenciária.
4. Recurso especial provido”. Grifo meu. (Sic).
No caso concreto, a seguradora recorrente apontou a ocorrência de divergência jurisprudencial em relação a interpretação do atual artigo 757 do Código Civil, ainda vigente até o advento da nova lei, bem como da mesma redação de novas apólices desta modalidade securitária, que poderão ser contratadas a partir do início da novel lei. Essa interpretação se dessume em decorrência do que se encontra redigido em seu artigo 1º, que repete a locução contra riscos predeterminados, levando em consideração a impossibilidade de se comparar doenças ocupacionais a acidente pessoal para fins securitários e diante da licitude da cláusula excludente dessa cobertura.
Segundo o voto do ministro relator no processo em foco, a cobertura de Invalidez Permanente por Acidente (IPA) garante o pagamento de indenização relativa à perda, à redução ou à impotência funcional definitiva, total ou parcial, de um membro ou órgão por lesão física, causada por acidente pessoal coberto (art. 11 da Circular/Susep nº 302/2005; art. 2º, I, da Resolução/CNSP nº 439/2022).
Todavia, de acordo com decisão exarada pelo CNSP, no conceito de acidente pessoal, estão excluídas as doenças, porém inclusas as profissionais, quaisquer que sejam suas causas, ainda que provocadas, desencadeadas ou agravadas, direta ou indiretamente por acidente, ressalvadas as infecções, estados septicêmicos e embolias, resultantes de ferimento visível causado em decorrência de acidente coberto; as intercorrências ou complicações consequentes da realização de exames, tratamentos clínicos ou cirúrgicos, quando não decorrentes de
acidente coberto; as lesões decorrentes, dependentes, predispostas ou facilitadas por esforços repetitivos ou microtraumas cumulativos, ou que tenham relação de causa e efeito com os mesmos, assim como as lesões classificadas como:
Lesão por Esforços Repetitivos – LER, Doenças Osteo-musculares Relacionadas ao Trabalho – DORT, Lesão por Trauma Continuado ou Contínuo – LTC, ou similares que venham a ser aceitas pela classe médico científica, bem como as suas consequências pós-tratamentos, inclusive cirúrgicos, em qualquer tempo; e as situações reconhecidas por instituições oficiais de previdência ou assemelhadas, como ‘invalidez acidentária’, nas quais o evento causador da lesão não se enquadre integralmente na caracterização de invalidez por acidente pessoal, definido no inciso I deste artigo.
Nessa toada, segundo o voto do relator, a cobertura de Invalidez Permanente por Acidente (IPA) não abrangeria as doenças, inclusive as classificadas como profissionais, ainda que consideradas acidentes do trabalho pela legislação previdenciária, a exemplo daquelas decorrentes ou não de microtraumas de repetição.
Para tanto, o voto condutor colacionou os seguintes precedentes da Corte:
“AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CIVIL. SEGURO DE VIDA.
DOENÇA OCUPACIONAL. EQUIPARAÇÃO A ACIDENTE DO TRABALHO.
IMPOSSIBILIDADE. ACÓRDÃO QUE DIVERGE DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ.
1. Por expressa previsão legal e contratual, a cobertura por Invalidez
Permanente Parcial ou Total por Acidente (IPA) não abrange as doenças, inclusive as classificadas como profissionais, ainda quando consideradas acidentes do trabalho pela legislação previdenciária. Precedentes.
2. Agravo interno a que se nega provimento.” (AgInt no REsp n. 2.154.692 /MS, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 28/4/2025, DJEN de 6/5/2025.)
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. SEGURO DE VIDA EM GRUPO. DOENÇA
OCUPACIONAL. COBERTURA SECURITÁRIA. DISSONÂNCIA ENTRE O ACÓRDÃO RECORRIDO E A JURISPRUDÊNCIA DO STJ.
1. Ação de indenização securitária.
2. De acordo com a orientação consolidada nesta Corte Superior, a modalidade de seguro invalidez por acidente pessoal (IPA) não estende sua cobertura à doença profissional.
3. Recurso especial conhecido e parcialmente provido. (REsp n. 2.159.130/MS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/3/2025, DJEN de 27/3/2025.)
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE COBRANÇA. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL, NÃO OCORRÊNCIA. SEGURO DE VIDA EM GRUPO. INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. INVALIDEZ PERMANENTE POR ACIDENTE (IPA). MICROTRAUMA DE REPETIÇÃO. DOENÇA PROFISSIONAL.
MOLÉSTIA CAUSADORA DA INCAPACIDADE. EQUIPARAÇÃO A ACIDENTE DE TRABALHO. IMPOSSIBILIDADE.
1. Não há que se falar em negativa de prestação jurisdicional se o tribunal de origem motiva adequadamente sua decisão, solucionando a controvérsia com a aplicação do direito que entende cabível ao caso, apenas não no sentido pretendido pela parte.
2. A cobertura de Invalidez Permanente por Acidente (IPA) garante o pagamento de uma indenização relativa à perda, à redução ou à impotência funcional definitiva, total ou parcial, de um membro ou órgão por lesão física, causada por acidente pessoal coberto (art. 11 da Circular/Susep nº 302/2005; Resolução/CNSP nº 117/2004 e art. 2º, I, da Resolução/CNSP nº 439/2022).3. Por expressa previsão legal e contratual, a cobertura por Invalidez Permanente Total ou Parcial por Acidente (IPA) não abrange as doenças, inclusive as classificadas como profissionais, ainda quando consideradas acidentes do trabalho pela legislação previdenciária, a exemplo daquelas decorrentes ou não de microtraumas de repetição. Precedentes.4. Na hipótese, a invalidez da autora (doença ocupacional) não se enquadra na definição securitária de Invalidez por Acidente (IPA), por expressa exclusão da avença, e não se confunde, ainda, com a invalidez previdenciária.5. Recurso especial provido.” (REsp n. 2.173.549/MS, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 31/3/2025, DJEN de 4/4/2025.)
Forçoso concluir, neste diapasão, que a invalidez permanente por acidente (IPA), prevista nos contratos de seguro de vida, não se confundem com a invalidez previdenciária, esta última reconhecida e albergada no âmbito do regime público de seguridade social e abrangente de doenças profissionais ou ocupacionais. Por expressa exclusão contratual, o seguro de natureza jurídica privada restringe a cobertura às hipóteses de acidente pessoal, afastando a indenização quando a incapacidade resulta de doença profissional ou de causa não súbita.
A limitação do risco no contrato de seguro, longe de constituir afronta ao princípio da boa-fé objetiva ou da função social deste contrato relacional, representa expressão legítima da autonomia privada e do equilíbrio atuarial que sustenta a técnica securitária. Ao delimitar, portanto, o objeto do contrato, o segurador define o campo de incidência da mutualidade e estabelece, de forma transparente, clara e objetiva, os contornos do risco assumido e do prêmio correspondente. Destarte, o que se convencionou excluir não se traduz em negação arbitrária da cobertura, mas em exercício lícito do direito de não garantir o que não foi contratado.
De outra banda, a força obrigatória das cláusulas limitativas, desde que redigidas com clareza e destaque, encontra respaldo na legislação vigente e vindoura, assim como na jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, que reconhece a validade das exclusões quando compatíveis com a natureza jurídica do contrato e comunicadas de modo inequívoco ao segurado.
Por fim, a limitação do risco deve ser compreendida não como obstáculo à proteção do segurado, mas como condição essencial à preservação do equilíbrio técnico e econômico do sistema securitário. A justa delimitação do risco é o que assegura a higidez do fundo mutual, a previsibilidade das obrigações e, em última ratio, a efetividade da própria garantia securitária. Em um cenário de crescente complexidade dos contratos relacionais e da expansão das modalidades contratuais do seguro, reafirmar a legitimidade das cláusulas de exclusão de cobertura, quando pautadas pela boa-fé e pela transparência, é reafirmar também a racionalidade do seguro enquanto instrumento de proteção e de justiça contratual.
Porto Alegre, 07/11/2025.
[1] Voltaire Marenzi. Análise da Nova Lei de Seguros. Roncarati Editora, 2025, página 163.
[2] Vide página 183 deste meu livro.
[3] Nova Lei de Contrato de Seguro. Estudo Sistemático. Revista dos Tribunais. Thomson Reuters 2025, página 56.