Garimpeiro manipula mercúrio no Rio Madeira no município de Autazes, no Amazonas (Ricardo Oliveira / CENARIUM)
MANAUS (AM) – O uso e o contrabando de mercúrio na Amazônia estão provocando uma crise de saúde pública e ambiental sem precedentes. Um relatório inédito, produzido pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), alerta que o Brasil se tornou um dos principais destinos do mercúrio contrabandeado na América do Sul.
Utilizado em garimpos ilegais de ouro, a substância é responsável por altos níveis de contaminação em comunidades indígenas. “O uso indiscriminado de mercúrio representa uma grave ameaça à saúde pública e à biodiversidade”, aponta o relatório. “As populações indígenas e ribeirinhas estão entre as mais afetadas, com níveis de exposição alarmantes”, alerta o documento lançado na última quinta-feira, 30.
O estudo mostra que a exposição ao mercúrio é mais severa entre indígenas e moradores de comunidades tradicionais do que entre os próprios garimpeiros, por causa do consumo de peixes contaminados.

“A presença de mercúrio foi identificada em todas as amostras de cabelo coletadas entre indivíduos do povo Ninam, na Terra Indígena Yanomami”, destaca a pesquisa. Em 84% dos casos, o nível de exposição foi igual ou superior a 2 µg/g – acima do limite de segurança da Organização Mundial da Saúde.
Na Terra Indígena Sawré Muybu (PA), do povo Munduruku, a situação é ainda mais crítica: “A prevalência de mercúrio acima de 6 µg/g atingiu 57,9% dos participantes”, aponta o estudo. Os resultados apontam para o agravamento da exposição entre povos tradicionais, que seguem consumindo peixes contaminados por biomagnificação, processo em que o metal se acumula ao longo da cadeia alimentar.
Redes criminosas
Segundo o relatório, o mercúrio contrabandeado chega ao Brasil principalmente pela Bolívia e Guiana, países com legislações mais permissivas. “As quadrilhas envolvidas têm alta capacidade de adaptação e realocação regional”, afirma o documento. “Mesmo após a adesão dos países amazônicos à Convenção de Minamata, grupos criminosos seguem explorando brechas na fiscalização”, explica.
Operações da Polícia Federal (PF) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), como a Operação Hermes (Hg), desarticularam redes que importavam mercúrio via Bolívia e “esquentavam” o produto com declarações falsas. “Essas organizações utilizavam empresas de fachada e sistemas fraudulentos para abastecer garimpos ilegais na Amazônia”, revela o relatório. O preço do metal chega a R$ 1,2 mil por quilo, facilmente adquirido até pela internet.
Cooperação internacional é urgente
O documento destaca que, embora o Brasil tenha ratificado a Convenção de Minamata e intensificado as ações de fiscalização, o problema persiste por conta do contrabando transfronteiriço. “O fluxo de mercúrio e os efeitos danosos da contaminação só poderão ser interrompidos com esforços conjuntos dos países amazônicos”, enfatiza o relatório. Segundo o documento, a cooperação entre órgãos de segurança e inteligência é essencial para conter o avanço das redes criminosas e proteger a saúde das populações.
Entre as medidas propostas estão o fortalecimento de redes de monitoramento ambiental e de saúde, a criação de laboratórios regionais e o estímulo a práticas de mineração sem mercúrio, por meio do projeto Ouro sem Mercúrio, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). “Não há como se falar em desenvolvimento sustentável para a Amazônia sem que a segurança pública e a saúde das populações sejam tratadas como prioridades”, conclui o documento.
