18 30, 70, 99, 132… o número de casos suspeitos de cólera aumenta de semana em semana, no departamento (estado) Oeste do Haiti, onde fica a capital, Porto Príncipe. O crescimento da curva de contaminação preocupa trabalhadores da Saúde, apesar da taxa ainda baixa de contaminação de 8%, e acredita-se em subnotificação. Acima de tudo, em contexto de várias crises simultâneas, o país está em péssimas condições para controlar um novo surto.
“As zonas com forte densidade urbana e escassas infraestruturas sanitárias são especialmente vulneráveis” – alerta um informe do Ministério da Saúde Pública e da População (MSPP), que teme uma “pressão considerável nas estruturas de Saúde já fragilizadas”.
Mas o aviso é eufemismo. A deterioração da segurança em Porto Príncipe levou várias unidades a fecharem suas portas ao longo dos últimos anos, a tal ponto que, se ainda existem clínicas privadas, bem acima do orçamento da maioria da população, apenas um hospital público continua em funcionamento na região da capital: o Lapè, em Delmas.
O hospital já abriu um ambulatório no local para priorizar o atendimento dos casos suspeitos de cólera, mas, com a pressão e as duras condições de trabalho, o esgotamento dos profissionais já é grande, em todos os serviços.
“[O hospital] está sempre cheio e desbordado”, lamenta Sergeline Nazulus, enfermeira no Lapè. “Porque recebe todos os casos, não só da cólera, mas qualquer acidente, doença ou dor… cada dia aumenta a demanda para os enfermeiros e médicos”, disse ela à reportagem do Brasil de Fato.
Além da superlortação, poucos conseguem chegar até o hospital. O acesso é limitado pela enorme dificuldade de circulação em boa parte do país, especialmente na capital, Porto Príncipe, onde grandes áreas são dominadas por gangues.
A proliferação da cólera tem ainda um agravante, já que, na maioria dos pacientes, a doença se manifesta com sintomas leves de diarreia ou náusea – podendo ser também assintomático – o risco é de desidratação aguda para os casos mais críticos, podendo ser fatal se não for tratada com urgência.
“A primeira coisa é administrar um soro oral, para a recuperação. Mas se a pessoa não sabe disso, ou então se ela fica em casa com a doença, sem ir ao hospital, ela pode mesmo se desidratar e isso pode causar a morte”, explica Sergeline Nazulus.
Ninhos de contaminação
O segundo aspecto que preocupa em relação à epidemia é a sua propagação. A cólera é uma bactéria que geralmente é transmitida pela ingestão de água ou alimentos contaminados. Ou seja, é diretamente ligada às condições de higiene da população, saneamento básico e acesso à água. Por isso, ela encontra na Porto Príncipe de 2025 um terreno extremamente fértil.
Para Nazulus, há uma ligação direta e inegável entre a multiplicação da doença, a concentração populacional e a irresponsabilidade do governo. “Foram registrados mais casos nos lugares onde as pessoas vivem com maior promiscuidade”, analisa os dados.
“Se olhar para Petionville [terceiro município com maior número de casos], se vê muito lixo espalhado na rua, águas sujas escorrendo, no meio dos carros e das pessoas… a prefeitura não assume sua responsabilidade em relação a isso. Esse contexto também contribui à multiplicação da doença”.
As condições não ajudam
Bel-Air é uma comunidade pobre, uma das maiores e mais carentes de Porto Principe e cercada por grupos armados. Resain Domini, morador do local, tem a mesma leitura da situação. Para ele, além da falta de coleta de lixo e saneamento básico – serviços deixados aos cuidados da própria população – a escassez da água é o fator mais prejudicial.
Domini conta que a zona teve água encanada – o que não o caso de todos os bairros – mas que as gangues cortaram o serviço e quebraram os canos. “A situação está difícil… ficamos simplesmente sem água! Nem para tomar, nem para usar, nem para dar descarga no banheiro. O único jeito é comprar galões, mas acaba saindo muito caro e, às vezes, os veículos que os trazem também não conseguem passar.”
Outro foco de propagação são os campos de refugiados que abrigam centenas ou milhares de famílias que foram expulsas de suas casas pela violência das gangues. Reportagem da plataforma haitiana Ayibopost, publicada no mês de abril, na ocasião de um primeiro surto da doença este ano, denunciou a precariedade desses locais que não têm estrutura adequada para garantir condições dignas de sobrevivência.
“As pessoas dormem no chão com recém-nascidos em condições de promiscuidade, às vezes em salas que servem de banheiros, amontoadas com sacos cheios de roupas e outros objetos. Também é possível observar utensílios de cozinha e até mesmo alimentos nas pias dos blocos sanitários de alguns locais,” podemos ler na matéria de Jean Feguens e Jerôme Wendy Norestyl. Diante do descaso do próprio Estado, são principalmente ONGs que trabalham para atender esta população, com água potável e serviços de prevenção em saúde, ainda que de forma irregular e insuficiente.
Responsabilidade
A cólera foi levada ao Haiti pela Missão das Nações Unidas para a Estabilidade do Haiti (Minustah), liderada pelo Brasil, há 15 anos. Naquele 2010, o país estava devastado pelo forte terremoto que matou centenas de milhares e passou a sofrer também com a doença, levada por soldados do Nepal.
Os primeiros casos foram identificados em outubro de 2010, na comuna de Mirebalais, às margens do rio Artibonite, onde diversas comunidades costumavam pegar água, para beber e uso doméstico, e lá se baseou um contingente de soldados nepaleses, recém-chegados. Investigação posterior mostrou que foram eles que trouxeram a bactéria e que a contaminação generalizada foi por terem despejado os sanitários do acampamento dentro do rio.
“A epidemia começou a se espalhar na região e a gente não entendia o que estava acontecendo. As pessoas não sabiam que a contaminação vinha do rio. Tomavam aquela água porque não tinham outra água para tomar”, lembra Resain Domini. A doença trazida pelas tropas da Organização das Nações Unidas (ONU) infectou pelo menos, 800 mil haitianos entre 2010 e 2016, e causou a morte de quase 10 mil em todo o país.
Mas, apesar das provas e do trabalho árduo dos advogados, nunca houve, de fato, uma responsabilização da comunidade internacional, nem nenhum tipo de compensação ou indenização para as famílias de vítimas. A ONU se contentou em reconhecer os fatos e o estado haitiano continuou desempenhando o seu papel de passividade em relação ao tema.

Ao povo haitiano, restou o trauma. Mas também com aprendizado. Membro de uma organização popular, o Movimento pela Liberdade, Igualdade dos Haitianos pela Fraternidade (Moleghaf), Domini lembra das importantes mobilizações e campanhas de prevenção que realizaram naquela época.
“São as organizações que fizeram essa sensibilização sobre lavar as mãos, manter uma boa higiene, ferver a água antes de tomar”. Fazendo um paralelo com a situação atual, ele promete que não ficarão de braços cruzados, mas também não esconde o pessimismo:
“A gente sempre tem um plano B, porque estamos acostumados com um Estado que não faz nada”, ironiza. “Mas hoje está mais difícil, porque não temos hospital e não temos água…É um outro tipo de guerra que travam contra a população e que ainda pode matar muita gente.”
