Livros tentam preservar memórias de quem viveu nos bairros afetados pela mineração de sal-gema
A extração de sal-gema em Maceió alterou de forma irreversível a vida de milhares de famílias. Os bairros do Pinheiro, Mutange, Bom Parto, Bebedouro e parte do Farol — historicamente povoados por gerações de maceioenses — tiveram suas rotinas silenciadas pelo afundamento do solo. Considerada um dos maiores desastres socioambientais urbanos do País, a tragédia desfez lares, laços afetivos e histórias de pertencimento, afetando mais de 60 mil pessoas.
Agora, em 2025, a esperança de preservar essas memórias renasce com duas frentes: o projeto Vozes da Mundaú, do Ministério Público Federal em Alagoas (MPF), e a publicação de dezenas de livros derivados de teses, dissertações e monografias produzidas em instituições acadêmicas do Estado.
Lançado em outubro, o projeto do MPF cria um canal permanente de escuta para os atingidos direta ou indiretamente pela tragédia. Os encontros serão presenciais e mensais, sempre na última quarta-feira de cada mês, com atendimento a pequenos grupos previamente agendados.
A proposta vai além da simples coleta de relatos: busca qualificar as vozes das vítimas, transformar a dor em dado e garantir acompanhamento institucional aos impactos contínuos do desastre. Segundo o MPF, o caso Braskem ainda é um “desastre em curso”, com desdobramentos imprevisíveis que exigem atenção constante do poder público.
ESTUDOS E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO
A tragédia também impulsionou um expressivo movimento acadêmico. Pesquisadores de áreas como geologia, urbanismo, psicologia, direito e sociologia vêm se debruçando sobre o tema.
Um dos destaques é o livro O Avesso dos Sentidos do Discurso da Braskem, do professor doutor Zoroastro Pereira de Araújo Neto, ex-morador do Jardim das Acácias, no Pinheiro, que transformou o luto pela perda de sua casa e vizinhança em uma análise crítica sobre as vozes silenciadas da população.
Outro nome central é o do engenheiro e geotécnico Abel Galindo Marques, um dos primeiros a denunciar irregularidades nas minas da Braskem. Ridicularizado à época, teve suas pesquisas confirmadas e publicadas em dois livros, entre eles Tragédia – Crime ambiental da mineração de sal-gema em Maceió. “O caso Braskem ainda não acabou. Haverá novas realocações e vozes silenciadas”, afirma.
A dimensão da tragédia ultrapassa os danos físicos. A realocação em massa desfez vínculos culturais, sociais e familiares, provocando rupturas profundas no tecido comunitário. “É como se arrancassem a alma da cidade”, resume um dos depoimentos colhidos por pesquisadores. O projeto Vozes do Mundaú também tem valor simbólico: legitima a dor como fato histórico e ajuda a impedir que o desastre caia no esquecimento.
VIGILÂNCIA E
PLANO DIRETOR
A resposta institucional segue em várias frentes. A Defesa Civil de Maceió monitora, 24 horas por dia, as 35 minas da Braskem — todas desativadas por decisão da Justiça Federal. Segundo o coordenador Abelardo Nobre, o preenchimento completo das cavidades subterrâneas deve ocorrer até dezembro de 2026. A área afetada, de mais de 3 km², continuará classificada como de uso restrito e não poderá ser reocupada. A medida integra o novo Plano Diretor da cidade, que cria a Zona de Monitoramento e Reparação (ZMR), prestes a ser enviada à Câmara Municipal para votação.
O diretor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Maceió, Antônio Carvalho, reforça que, mesmo com o fim da mineração, a região exige vigilância permanente e reparações complexas.
A criação de acervos, documentários, exposições e a inclusão do desastre em currículos escolares está em debate como forma de preservar a memória coletiva. “A história da dor não pode ser enterrada com os escombros das casas que um dia existiram”, dizem pesquisadores.
INDENIZAÇÕES E COMPROMISSOS
A Braskem afirma, em nota, que mantém o compromisso de não construir nas áreas desocupadas, seja para fins residenciais ou comerciais. Em relação às indenizações, informou ter apresentado 19.190 propostas aos moradores das áreas de risco, número equivalente à totalidade dos pleitos recebidos até março. Destas, 19.089 (99,5%) foram aceitas e 19.031 (99,2%) já foram pagas. As famílias que não aceitaram ainda analisam ou pedem reavaliação dos valores. Somadas as compensações e auxílios financeiros, o programa de indenização já pagou R$ 4,21 bilhões desde 2019.
O monitoramento do fechamento das minas e o atendimento às pessoas afetadas seguem sob acompanhamento do MPF, MPAL, Defensoria Pública da União e Defensoria Pública do Estado de Alagoas.