A poluição plástica deixou de ser um problema restrito ao consumo e descarte de embalagens para se tornar um desafio ecológico global de consequências ainda pouco compreendidas. A degradação de objetos comuns, como garrafas e sacolas, dá origem aos microplásticos e nanoplásticos que percorrem longas distâncias em ambientes aquáticos, infiltram-se nos organismos vivos e alteram cadeias alimentares inteiras.


Durante a Escola São Paulo de Ciência Avançada sobre Poluentes Emergentes, realizada em setembro em Santos, o pesquisador Décio Luis Semensatto Junior, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), chamou a atenção para um efeito colateral pouco debatido: a contaminação de peixes por microplásticos pode afetar não apenas a pesca e a segurança alimentar, mas também a agricultura de larga escala no Brasil.
Peixes desempenham papel essencial no equilíbrio de ecossistemas aquáticos. Eles controlam populações de larvas de libélulas, predadores naturais de diversas espécies de abelhas. Quando contaminados por microplásticos, esses peixes sofrem maior mortalidade, o que desequilibra toda a cadeia: as larvas de libélulas proliferam e, em seguida, atacam abelhas responsáveis pela polinização de culturas estratégicas como soja, café, feijão e laranja.
O alerta de Semensatto mostra como a contaminação por microplásticos não pode ser analisada isoladamente. Os ecossistemas aquáticos e terrestres estão profundamente interligados, e qualquer ruptura gera efeitos em cascata. Nesse caso, a morte de peixes pode significar não apenas menos alimento nos pratos, mas também colheitas menores nos campos.


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O alcance da poluição invisível
Microplásticos e nanoplásticos já foram encontrados em organismos de todos os tamanhos. Até mesmo a minúscula Daphnia magna, um microcrustáceo filtrador que mede até 5 milímetros e é amplamente utilizado como bioindicador em testes ecotoxicológicos, apresenta partículas de plástico no organismo. Análises de laboratório identificaram até duas partículas de nanoplástico em indivíduos dessa espécie, oriundas de tampas de garrafas ou fragmentos de fibras sintéticas.
O processo de degradação é contínuo. A exposição à radiação ultravioleta, à água e a fatores ambientais altera a cor, a estrutura e a composição química dos plásticos, gerando partículas cada vez menores e mais difíceis de rastrear. Durante coletas na foz do rio Amazonas, pesquisadores identificaram fibras fragmentadas que, com o tempo, se multiplicaram em incontáveis partículas microscópicas — cada uma com uma “história química” distinta.
Esse ciclo de fragmentação quase infinito transforma a poluição plástica em um fenômeno persistente, de longa duração e difícil de conter. Um simples fragmento pode se tornar uma nuvem de partículas invisíveis, espalhando-se por diferentes ecossistemas.
Para além do impacto ecológico, a questão dos plásticos está diretamente ligada às mudanças climáticas. Semensatto lembra que 99% dos polímeros atualmente em circulação são derivados de combustíveis fósseis. Mesmo quando utilizados em objetos cotidianos, plásticos são, em essência, “combustíveis fósseis em movimento”. Essa perspectiva amplia o alcance do debate: não se trata apenas de resíduos sólidos, mas de um prolongamento da dependência global de petróleo e gás.
Um impasse nas negociações internacionais
No início de agosto de 2025, representantes de 184 países se reuniram em Genebra para a quinta sessão do Comitê Intergovernamental de Negociação que discute um tratado global juridicamente vinculante para enfrentar a poluição plástica. Apesar da expectativa, as negociações terminaram sem consenso.
Esse ritmo lento preocupa cientistas. Enquanto governos discutem, as partículas continuam a se acumular nos ecossistemas, multiplicando riscos para a biodiversidade, a segurança alimentar e até mesmo para economias nacionais dependentes da agricultura.
O alerta vindo da Unifesp ecoa em um ponto fundamental: a crise dos microplásticos não pode ser tratada como um problema isolado de gestão de resíduos. Ela afeta a cadeia ecológica de forma transversal, ameaçando desde o peixe no rio até a produtividade das lavouras.
A contaminação é silenciosa, quase invisível, mas os impactos são concretos e profundos. Se o planeta já enfrenta o desafio de alimentar uma população em crescimento, ignorar a poluição plástica pode comprometer a própria base da produção agrícola. Mais do que nunca, proteger os peixes significa também proteger os campos.