O governo de Javier Milei chegou ao poder com um mantra repetido até o cansaço: “acabar com a casta política corrupta”. Essa promessa tornou-se o núcleo discursivo de sua campanha e uma das principais razões de sua meteórica ascensão. No entanto, a retórica libertária esbarra na realidade.
Um escândalo de supostas propinas na Agência Nacional de Deficiência (ANDIS) atinge em cheio o coração da administração e expõe a contradição de um governo que se dizia alheio às velhas práticas, mas que hoje conta, em seu círculo mais próximo, com históricos expoentes da política tradicional como Patricia Bullrich, Luis “Toto” Caputo e numerosos membros da família Menem (mais de uma dezena).
O escândalo explodiu em meio a uma profunda crise do sistema monetário e cambial — da qual poucos falam — provocada pelas decisões do ministro da Economia, que lança luz sobre um modelo inviável, do qual até os setores especulativos — que vêm se enriquecendo com o saque — desconfiam. No dia 2 de setembro, houve uma nova intervenção do Estado, por meio do Banco Central, no mercado cambial, para tentar controlar o preço do dólar. Com a medida, o governo acabou de “queimar os livrinhos da Escola Austríaca”, como afirmou a ex-presidenta Cristina Kirchner na rede social X.
“Assim estamos: economista com e sem dinheiro… sem pesos e sem dólares”, declarou a líder peronista. Balança a ilusão de estabilidade econômica com a qual o governo tentou atravessar o período pré-eleitoral.
A administração Milei enfrenta a tormenta midiática com um grande problema de fundo, que afugenta os capitais estrangeiros e, em combinação com o escândalo das propinas, paralisa — ao menos temporariamente — o apoio absoluto das “Forças do Norte”.
Nem os EUA
O Departamento de Estado dos Estados Unidos, sob responsabilidade de Marco Rubio, suspendeu o acordo de isenção de vistos estadunidenses para argentinos e se recusou a receber Juan Pazo, titular da Agência de Arrecadação e Controle Aduaneiro (Arca), que ficou esperando dois dias em Miami e voltou à Argentina “humilhado” e de mãos vazias, segundo o meio Axios.
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Enquanto isso, Milei cancelou sua viagem a Las Vegas para assistir ao show de Fátima Flores, mas decidiu manter uma viagem relâmpago de 24 horas, em 4 de setembro, a Los Angeles, junto com Luis Caputo e sem sua irmã Karina, a principal envolvida nas supostas propinas. Viajou para cumprir “um compromisso” com o multimilionário Michael Milken e para se encontrar com empresários em busca de investimentos — que não chegam.
Milken, conhecido como o “Rei dos bônus podres” em Wall Street, esteve preso por dois anos na década de 1990 por tráfico de informação privilegiada — um dado de cor. O presidente viajou para encontrá-lo horas depois de participar do ato de encerramento de campanha na província de Buenos Aires, em tentativas desesperadas de construir uma narrativa de vitimização, inventando tentativas de magnicídio contra si por parte de “comandos kirchneristas e chavistas”. A farsa contrasta com a tentativa real de magnicídio contra Cristina Kirchner: três anos após aquele 1° de setembro de 2022, não apenas os responsáveis intelectuais seguem impunes pelo “duplo padrão” da máfia judicial, como a principal liderança popular está presa de maneira ilegal e proscrita, sem elementos probatórios contra ela.
Cobertura midiática
A impunidade oficial na Argentina teve seu ápice em fevereiro com a criptofraude $LIBRA, e em agosto se somou ao escândalo das propinas envolvendo Karina Milei, irmã do Presidente. O caso escalou vertiginosamente na mídia internacional. The Washington Post e El País repercutiram as denúncias, destacando que a “motosserra” de Milei não apenas corta aposentadorias e programas sociais, como também convive com velhos mecanismos de corrupção.
A trama se desenrola em meio ao que parece ser uma disputa interna nos círculos econômicos (o chamado “Círculo Vermelho”) pelo controle do Executivo, e com reveses legislativos, como o repúdio ao veto presidencial à Lei de Emergência em Deficiência.
A mídia hegemônica local, comandada pelo Grupo Clarín, reproduz o caso e chama a atenção para a gravidade do momento. O Clarín enfatiza que o escândalo já tem repercussão internacional. O conglomerado La Nación informa sobre os avanços judiciais e afirma que a gestão parece paralisada. O Infobae reflete a tensão política e mostra um Milei eleitoralmente condicionado pelo caso.
Alguns meios de comunicação colocam o foco na contradição do discurso libertário e descrevem um “fim da magia”, semelhante ao desgaste do ex-presidente neoliberal Mauricio Macri. O Ámbito Financiero detalha as manobras empresariais para buscar nulidades e as petições de ONGs que solicitam atuar como querelantes na causa.
O libertário recorre à mordaça
A reação oficial sobre o caso de Karina, peça-chave do dispositivo político libertário, foi errática. Em um primeiro momento, o governo tentou minimizar o caso. Depois, Milei passou a acusar Spagnuolo — ex-titular da Agência Nacional de Deficiência (ANDIS) — de mentiroso, classificando o episódio como uma “opereta” e uma “nova mentira” orquestrada contra sua gestão. Paralelamente, a Casa Rosada apontou para a oposição e falou de uma manobra de “espionagem ilegal”, após a divulgação de áudios que expõem os supostos desvios.
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A denúncia oficial permitiu ao governo obter uma mordaça judicial que proíbe novas publicações de gravações — um fato inédito —, o que gerou críticas de organismos de imprensa e organizações de direitos civis, que alertaram para um clima de censura e perseguição. Paradoxalmente, o governo da “liberdade” se tornou executor da censura prévia.
A ação foi apresentada pelo Ministério da Segurança, chefiado por Patricia Bullrich, e tem como alvos um conjunto de pessoas e atores que vão desde políticos kirchneristas, jornalistas e dirigentes da Associação do Futebol Argentino (AFA), até um suposto grupo de inteligência russo e comandos venezuelanos chavistas.
Discursos x prática
A estratégia defensiva revela um governo preso em seu próprio discurso. Enquanto Milei insiste em que é vítima de conspirações, os fatos demonstram que a corrupção não é alheia à sua administração. A presença da velha guarda política no gabinete — desde a ministra Patricia Bullrich, ex-referência da Proposta Republicana (PRO) e habituée de várias gestões, até o ministro Luis Caputo, lembrado pelo endividamento do governo Macri, e os Menem, símbolo dos anos 1990 — evidencia que o experimento libertário não conseguiu desmontar a “casta”, mas sim integrá-la ao seu projeto.
O timing não poderia ser pior. O caso ANDIS irrompe em meio a uma crise econômica profunda, com inflação persistente, recessão em setores industriais, queda no consumo e um cenário social cada vez mais tenso. Longe de consolidar confiança, a denúncia de propinas corrói ainda mais a credibilidade do Presidente, que apostava em mostrar um rumo claro às vésperas das eleições legislativas da província de Buenos Aires e das nacionais de outubro. Em vez de um relançamento, o governo ficou enredado em explicações, desmentidos e denúncias cruzadas.
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A imagem é clara: um presidente que chegou com a promessa de dinamitar a corrupção da “casta” hoje está cercado por denúncias de subornos, áudios comprometedores, medidas judiciais de censura e o constrangimento de ter ao seu lado os mesmos nomes que jurou combater. A motosserra não passou pela política tradicional, e sim pelos direitos sociais. E nesse vazio, as velhas práticas encontraram terreno fértil para se reproduzir.
O desfecho judicial ainda está em aberto, o cenário econômico está em crise e o político-institucional parece pender por um fio — ou por um áudio. O que já se consolidou é um dano político gigantesco: Milei e seu governo libertário, que buscavam se apresentar como os coveiros do velho regime, agora se revelam parte do leque de governos que prometeram enterrar. A “casta” não se foi; voltou ao poder com um novo discurso, mas com os mesmos negócios de sempre.