Olá, vizinho/a

Foto: Rita Ansone

Quando trabalhei no Bairro Alto, chegava de metro aos Restauradores e, depois, vinha logo a prova: a Calçada da Glória a dizer-me que Lisboa é feita de pernas, mas também de preguiça. Muitas vezes, em vez de músculos, preferi a corda de aço: o Elevador da Glória, que, cá em baixo, me piscava o olho. Perguntava “Está quase a subir?” ao guarda-freio, como ouvi tantos outros fazer.

Nem sempre andava no Elevador da Glória pela pressa – não leva muito mais tempo fazer o percurso a pé, apenas custa mais. Mas não era tempo perdido: era tempo ganho à pressa da cidade.

Hoje é o Frederico Raposo quem lhe escreve esta newsletter.

Entre as sete da manhã e a meia noite, aquele era um ritual que tive a oportunidade de testemunhar de perto: a cada dez minutos, sensivelmente, uma das cabinas do Elevador da Glória iniciava a descida, enquanto a outra subia. Poucos lhe conheciam a mecânica, não sabendo que aquela dança era um tango, que só se dança a dois, porque há um fio (um cabo de tração) que liga as duas cabinas.

Dentro de cada uma delas, 42 passageiros, quando ia cheio, e o guarda-freio da Carris percorrem simultaneamente e em direções opostas os 265 metros da Calçada da Glória. E Lisboa, inclinada a 17%, rendida à mecânica do óbvio: a cidade, se não inventasse este truque, tinha-nos menos lá em cima. De 17, para 61 metros acima do nível do mar.

Na cidade das sete colinas, a criação do Elevador da Glória significou uma transformação tão grande na mobilidade. Libertou-nos da perda de fôlego, para chegar lá acima, para ir para casa, para ir trabalhar, jantar com amigos ou ouvir fado no Bairro Alto.

O Elevador da Glória não era só para turistas.

Helena, António e Dulce usavam frequentemente o elevador. Fotos: Ana da Cunha

Helena Ferreira, que a minha colega Ana da Cunha encontrou esta quinta-feira a observar os destroços, é prova viva. Apanha o elevador para ir para o trabalho, lá em cima. Também António Rodrigues, para o trabalho ou para “as casas de fado do Bairro Alto” – na quarta-feira, por sorte, optou por fazer a subida até à Rua de São Pedro de Alcântara a pé. E mesmo os que já o não usam, como a Dulce e o marido. “Vim aqui por curiosidade, não sei se é com saudades disto, é um sentimento assim que não se explica”.

Helena sugere a criação de um memorial. As flores multiplicam-se junto à subida da Calçada da Glória. O luto nacional foi ontem, o municipal continua por mais dois dias.

Vera, vinda da Bélgica, vê a filha ali ao lado a ser entrevistada por uma das muitas estações televisivas estrangeiras que afluíram a Lisboa nas últimas horas. “Ontem estávamos aqui a passar e vimos tudo! Até me arrepio!” Há muitos sotaques e línguas diferentes, neste lugar, desde quinta-feira. Mas não pelos motivos a que Lisboa se habituou.

A entrada da Calçada da Glória parece um museu por estes dias.

Foto: Frederico Raposo

Eis o que diriam as legendas, sobre este elevador, se ele já fosse museu (recolha de Ana da Cunha):

  • Foi projetado pelo arquiteto portuense, filho de pais franceses, Raoul Mesnier Ponsard (que projetou também o da Bica e do Lavra, mas também o funicular do Bom Jesus do Monte, em Braga, e o funicular dos Guindais, no Porto). Este, o da Glória, foi inaugurado no dia 24 de outubro de 1885.
  • Nos seus inícios, o elevador tinha dois pisos ligados por uma escada em caracol. Os bancos eram longitudinais e as cabinas moviam-se por um sistema de contrapeso de água, tendo passado depois ao vapor – pois os cortes no abastecimento de água muitas vezes interrompiam a atividade.
Foto: Restos de Colecção
  • Até ao final do século XIX, conta-se que as suas viagens noturnas eram feitas à luz das velas, até que, em 1914, iniciou-se a sua eletrificação, assegurada pela “Central Elétrica de Santos”, propriedade da Carris. Em 1926, a exploração passou da “Companhia de Ascensores Mechanicos de Lisboa” para a “Companhia de Carris de Ferro de Lisboa”.
  • E talvez seja estranho pensar que, em 1934, chegou até a construir-se um “abrigo” para este elevador – que seria retirado no mesmo ano à custa de críticas negativas da opinião pública.

Em 2002, deram ao Elevador da Glória — e aos irmãos da Bica e da Lavra — o título de Monumento Nacional. Era a coroa oficial para o que já era, há muito, símbolo: Lisboa a vencer as suas colinas sem perder o fôlego.

Hoje, este lugar de cultura tornou-se um lugar de memória trágica. Foi ali, na curva que eu dobro todos os dias, que Lisboa parou.

E, como sempre acontece quando a dor chega depressa, as respostas não chegam com ela.

O Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários (GPIAAF) promete um relatório preliminar em 45 dias. Até lá, mais dúvidas do que certezas.

O jornalismo, nestes dias, devia aprender a lição que custa sempre repetir: conter a pressa de saber, para não inventar o que não se sabe.

Eis o que podemos dizer, para já:

1 – Afinal, quem faz a manutenção e por que é que isso conta tanto?

Em 2021, entrevistei Carlos Gaivoto, um engenheiro que trabalhou na Carris mais de 45 anos e que começou a carreira na empresa nas oficinas de Santo Amaro (onde até hoje pernoitam os elétricos da cidade e onde se faz parte da manutenção da rede).

Por opção da tutela, foram saindo e as valências técnicas da empresa fora sendo extintas e parte substancial dos trabalhadores saíram.

“Nem se compravam parafusos, faziam-se cá”, dizia Gaivoto. Chegaram a trabalhar mais de duas mil pessoas. Agora, serão poucas dezenas de trabalhadores, encarregues, sobretudo, da manutenção dos elétricos.

Fernando Nunes da Silva, engenheiro, professor catedrático no Instituto Superior Técnico e ex-vereador dos transportes da Câmara Municipal de Lisboa, entre 2011 e 2013, apontava esta semana, na tv, o risco para a manutenção de sistemas antigos, como os dos Ascensores da Carris, que seria a “rotura na cadeia de transmissão de conhecimento”. Não é necessariamente uma causa do acidente, é mais uma reflexão.

Para Nunes da Silva, a manutenção dos Ascensores da Carris “não funciona se não se assegurar essa transmissão de conhecimento, porque isto não vem nos manuais”. E, por isso, seria importante que a Carris recuperasse o conhecimento adquirido ao longo de décadas de operação e manutenção de sistemas como os utilizados nos Ascensores da cidade. No fundo, fazer a manutenção regressar aos quadros da Carris. O que, naturalmente, implica investir mais.

O especialista considera que nestes sistemas o diagnóstico depende do conhecimento acumulado, sendo assim mais facilmente identificáveis os sinais de alerta, que podem não estar previstos nos protocolos de inspeção.

Nas declarações aos jornalistas no decorrer da noite do desastre, Pedro Bogas, presidente da Carris, explicava que há cerca de 14 anos a manutenção dos ascensores passou a ser feita fora da empresa. Atualmente, a manutenção e acompanhamento técnico diário, semanal e mensal estava a cargo da MNTC – Serviços Técnicos de Engenharia, Lda.

2 – As inspeções estavam em dia?

Polícia Judiciária, Carris e GPIAAF. Cada uma destas entidades tem conduzido as suas próprias investigações para apurar o que levou ao desastre.

Em comunicado, a Carris explicou que a última manutenção geral ocorreu em 2022 e que a última reparação intercalar, que acontece de dois em dois anos, foi realizada em 2024.

Numa notícia publicada pela SIC, ficou a saber-se que houve uma inspeção técnica na manhã do acidente, entre as 9h13 e 9h46, com a duração de 33 minutos. Um documento da empresa responsável pela manutenção atestava o cumprimento de “todas as condições para a operação”. Ainda segundo o documento, o cabo de tração deve ser substituído a cada 600 dias. Faltariam 263 dias.

O cabo de tração que terá partido é constituído por vários fios metálicos e o protocolo para a sua inspeção no Ascensor da Glória é claro:

“Caso haja fios partidos, parar de imediato”.

Foto: Frederico Raposo

Segundo o documento tornado público, na manhã do desastre, o cabo de tração terá sido verificado através de inspeção visual durante “uma viagem completa”.

Esta manhã, o jornal Público dava conta de um outro dado: a Carris terá reduzido o tempo que os trabalhadores dedicam às vistorias: dantes havia dois funcionários, todos os dias em cada elevador, hoje são inspeções de 30 minutos.

3 – Trabalhadores da Carris reportaram falhas?

Manuel Leal, dirigente sindical da Fectrans e do STRUP, revelou ao Observador que “havia sistematicamente queixas e reportes da falta de tensão do cabo de sustentação deste elevador” e que esta situação estaria a provocar “dificuldades no próprio sistema de travagem”.

“Se isso se confirmar, é uma das situações que pode ter explicado o acidente”, diz Fernando Nunes da Silva.

“Se o cabo tem folga, o que é que acontece? A folga acumula-se na parte de baixo, por uma questão de gravidade, e a cabine de cima começa a andar tracionando apenas o cabo. E a cabine [de baixo] está parada, até que, de repente, tem que arrancar com aquele peso todo, como se fosse um chicote.”

4 – Elevador tinha ou não sistema de travagem de emergência?

Uma das questões mais colocadas nas últimas horas é: porque dependíamos apenas de um cabo? Não há um sistema de travagem de emergência para evitar catástrofes?

“Em princípio, devia haver dois sistemas [de travagem de emergência], mas tudo terá falhado. Isso é que é impressionante”, sublinha Nunes da Silva. “Há um sistema de freio do próprio motor elétrico, que na prática deixa de tracionar, e há um freio da roda em relação ao carril”.

Não consegui confirmar, em tempo útil, a existência destes sistemas de travagem de emergência – e essa questão não faz parte da informação transmitida nas conferências de imprensa.

Foto: Rita Ansone

5 – O que será do Elevador da Glória?

Fernando Nunes da Silva avança que será possível modernizar os Ascensores sem comprometer o seu caráter histórico e estético.

O desastre desta quarta-feira, que deixou a cabina completamente destruída, evidencia, para o especialista, a necessidade de “pensar muito bem em melhorias de segurança ativa e passiva para este tipo de veículos [e] para ter isto a funcionar com esta intensidade de procura”.

São vários os exemplos de Ascensores a operar na Europa com sistemas de tração idênticos aos do Ascensor da Glória. Um deles foi inaugurado no mesmo ano do Ascensor da Glória (1885): é o funicular de Marzili, na cidade de Berna, capital suíça, e o sistema de tração passou por um processo de evolução tecnológica idêntico ao nosso.

Foto: Swiss Activities

Inicialmente, os dois Ascensores funcionavam por contrapeso de água. Cada uma das duas cabines tinha um depósito de água que enchia quando a cabine se encontrava no nível superior e se esvaziava quando passava para o nível inferior – com a diferença de peso a permitir a deslocação numa cremalheira, um trilho dentado onde assentam rodas dentadas.

Este vídeo explica o sistema de contrapeso de água.

Mais tarde, os dois sistemas foram eletrificados. Um motor elétrico assegura a deslocação do cabo de tração que une as duas cabinas.

Curiosamente, o Elevador do Bom Jesus, em Braga, inaugurado três anos antes do Ascensor da Glória, continua a ser o mais antigo em serviço no mundo tracionado por um sistema de contrapeso de água.

Foto: Flickr

Não há relatos de nenhum acidente com o funicular Marzili, nem como o elevador do Bom Jesus. Os acidentes fatais em funiculares são, aliás, extremamente raros – aconteceu um com o Bondinho de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, em 2011.

A paragem do Elevador da Glória talvez seja longa e a retoma poderá depender disso, até que nos voltemos a sentir seguros. Em 2018, o da Glória já tinha descarrilado devido a uma “anomalia técnica”, mas não houve registo de vítimas. Ficou parado durante um mês.

Na tarde de ontem, Lisboa já era diferente, com elétricos mais vazios do que o costume.

Apuremos as responsabilidades, para dar paz às famílias das vítimas e à nossa cidade. Para voltarmos a perguntar: “Está quase a subir?”.

Até breve. Espero.

– Frederico Raposo, jornalista na Mensagem de Lisboa


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By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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