Evento súbito e origem traumática no acidente de qualquer naturezaEvento súbito e origem traumática no acidente de qualquer natureza

1. Introdução

A Seguridade Social, em sua matriz constitucional (art. 194, CF/88), visa assegurar a cobertura dos eventos de doença, invalidez e outros que compõem o rol de riscos sociais. O auxílio-acidente, previsto no art. 86 da lei 8.213/1991, materializa essa proteção ao amparar o segurado que, após a consolidação de lesões decorrentes de acidente de qualquer natureza, apresenta sequelas que implicam redução de sua capacidade para o trabalho que habitualmente exercia. A exata delimitação do fato gerador deste benefício – o “acidente de qualquer natureza” – é, portanto, um ponto nevrálgico para a efetividade do sistema protetivo.

Nesse contexto, a TNU – Turma Nacional de Uniformização, buscando pacificar a matéria, fixou no Tema 269 a tese de que o conceito de acidente de qualquer natureza “consiste em evento súbito e de origem traumática, por exposição a agentes exógenos físicos, químicos ou biológicos que acarretem lesão corporal ou perturbação funcional que cause a redução da capacidade para o trabalho”. Tal definição, ao buscar objetividade e segurança jurídica, importa do léxico médico os qualificadores “súbito” e “traumático” para o universo jurídico-previdenciário.

A utilização conjunta dos termos “evento súbito” e “origem traumática” na tese uniformizadora suscita questionamentos técnico-jurídicos relevantes, especialmente quanto à possibilidade de interpretações divergentes pelos operadores do direito, com reflexos diretos na concessão de benefícios previdenciários.

Contudo, a aparente clareza da tese esconde uma complexa zona de penumbra hermenêutica. A utilização conjunta e necessária dos critérios de subitaneidade e traumaticidade pode, paradoxalmente, gerar o efeito oposto ao pretendido, fomentando a insegurança jurídica. O Direito, por sua natureza, opera com categorias e marcos temporais definidos; a Medicina, por sua vez, frequentemente lida com processos e etiologias multifatoriais. A tentativa de capturar a dinâmica de um agravo à saúde em uma “fotografia” jurídica de um evento discreto e datado pode levar a exclusões indevidas do manto protetivo previdenciário.

Como ensina Wladimir Novaes Martinez1, um dos precursores do estudo da matéria, o acidente de qualquer natureza deve ser entendido em sua acepção mais ampla, como um acontecimento imprevisto e fortuito que causa dano à integridade do indivíduo. A questão que se impõe é: a definição da TNU, ao exigir a concomitância dos dois elementos, abarca adequadamente situações-limite, como as lesões por esforços repetitivos (LER/DORT) cuja manifestação clínica final pode ser súbita (uma ruptura tendínea, por exemplo), mas cuja origem é processual e microtraumática, ou o agravamento de uma doença degenerativa preexistente por um gatilho de esforço mínimo, que desafia a noção clássica de “trauma”?

Diante desse cenário de potencial conflito interpretativo, o presente estudo propõe-se a uma análise bifronte. Primeiramente, a partir de uma revisão da literatura médica e médico-legal, notadamente nos campos da Traumatologia, Medicina do Trabalho e Fisiopatologia, buscar-se-á dissecar os conceitos de “evento súbito” e “origem traumática”. Como se verá, embora tecnicamente precisos em seus respectivos contextos, a transposição acrítica para o campo do Direito Previdenciário pode ser problemática. Autores como Genival Veloso de França2, em sua clássica obra “Medicina Legal”, definem trauma como a ação de uma energia externa sobre o corpo, o que parece alinhar-se à tese, mas a noção de “energia” e “ação” precisa ser cuidadosamente ponderada.

Em um segundo momento, o artigo se debruçará sobre as implicações jurídicas dessa conceituação, confrontando a tese do Tema 269 com os princípios norteadores do Direito Previdenciário, como o da proteção ao hipossuficiente (in dubio pro misero) e o da interpretação social da norma. O objetivo final é demonstrar que, embora louvável a busca por uniformização, a rigidez conceitual da tese pode criar barreiras de acesso ao benefício que não encontram respaldo na finalidade social da lei, clamando por uma interpretação teleológica e sistemática por parte dos magistrados e da própria Administração Pública, a fim de garantir que a proteção securitária alcance todos os infortúnios que efetivamente reduzem a capacidade laborativa do segurado de forma imprevista.

2. O critério da subitaneidade: Uma análise do marco temporal do infortúnio

A tese fixada no Tema 269 da TNU elege o “evento súbito” como o primeiro pilar para a caracterização do acidente de qualquer natureza. A análise deste termo, tanto em sua acepção leiga quanto técnica, revela a intenção do julgador de estabelecer um marco temporal claro e definido para o fato gerador do benefício previdenciário.

Do ponto de vista semântico, “súbito” remete àquilo que é imprevisto, repentino, que ocorre sem aviso prévio. Essa noção é corroborada por dicionários da língua portuguesa, que o definem como algo que “chega ou acontece de repente”3. Na seara médica, essa concepção temporal é traduzida pelo termo “agudo”. Conforme define o MedlinePlus, portal mantido pelo NIH – National Institutes of Health dos EUA, “agudo” descreve um quadro de início súbito ou sintomas que pioram rapidamente, estabelecendo uma dicotomia fundamental com o “crônico”, que se refere a condições de longa duração4.

De forma análoga, a literatura médica especializada frequentemente utiliza a subitaneidade do início dos sintomas como critério diagnóstico para emergências. O “acidente vascular cerebral agudo” (acute stroke), por exemplo, é classicamente definido como uma emergência médica caracterizada pelo “início súbito de déficits neurológicos focais” (sudden onset of focal neurological deficits)5, reforçando a associação indissociável entre a agudeza do evento e sua manifestação temporal repentina.

2.1. A complexidade fisiopatológica por trás da manifestação súbita

Se, para o Direito, o evento súbito representa uma “fotografia” – um momento preciso no tempo -, para a Medicina, essa fotografia é frequentemente o desfecho de um longo “filme” fisiopatológico. Aqui reside a primeira fonte de potencial ambiguidade interpretativa. Muitas condições que se manifestam de forma aguda e incapacitante são, na verdade, a “agudização de um quadro crônico”.

Considere-se o caso de uma ruptura do tendão de Aquiles em um trabalhador durante um esforço de levantar uma caixa. A ruptura é, inegavelmente, um evento súbito. O segurado consegue identificar o dia, a hora e o exato movimento que resultou na lesão. Contudo, exames de imagem e a análise histopatológica do tecido poderiam revelar um processo crônico e silencioso de tendinopatia degenerativa, com microlesões que se acumularam ao longo de anos, fragilizando o tendão até o ponto em que um esforço final, talvez nem mesmo excepcional, tenha atuado como “a gota d’água”. Nesse contexto, a doutrina médica ortopédica é clara ao distinguir a causa imediata (o esforço) da causa mediata (a condição degenerativa pré-existente)6.

Elas são, na verdade, o ponto culminante de um processo crônico e silencioso de degeneração conhecido como tendinose, que fragiliza a estrutura do tendão ao longo do tempo. Um estresse mecânico final, agindo sobre este substrato vulnerável, desencadeia a ruptura aguda. Surge, então, o questionamento crucial para a seara previdenciária: o evento súbito exigido pela TNU refere-se apenas à manifestação clínica final (a ruptura) ou deve-se considerar todo o processo causal subjacente?

Uma interpretação excessivamente restritiva, focada apenas no caráter repentino da manifestação, poderia excluir do amparo previdenciário inúmeras situações em que um fator externo agiu sobre uma condição prévia, desencadeando a incapacidade. Do ponto de vista jurídico, a exigência de um “evento único e determinado no tempo”, como defendido por parte da doutrina para caracterizar o acidente, visa justamente diferenciar o infortúnio da doença profissional ou da doença degenerativa pura. O desafio, no entanto, é aplicar esse critério sem desconsiderar a realidade biológica de que muitos “eventos únicos” são, na verdade, o clímax de processos cumulativos.

A subitaneidade, portanto, deve ser analisada sob a ótica da percepção do segurado e da manifestação da incapacidade, mas sem que isso represente um véu sobre a necessária investigação da concausalidade, tema que será mais bem explorado quando analisarmos o segundo critério: a “origem traumática”.

2.2. A desconstrução médica do evento súbito e suas implicações jurídicas

A conceituação de “evento súbito” pode ser desdobrada em características médicas essenciais que, embora claras em teoria, demandam uma interpretação cuidadosa quando transpostas para a análise de um caso concreto no âmbito previdenciário. A partir da sua identificação, podemos analisar as implicações de cada uma:

  • a) Início repentino e manifestação rápida: Estes dois elementos, intimamente ligados, formam o cerne da temporalidade do evento. O início repentino refere-se ao momento em que o agravo à saúde se instala, a “ignição” da lesão. A manifestação rápida, por sua vez, descreve a evolução célere do quadro, desde a lesão inicial até a estabilização de suas consequências. Do ponto de vista médico, um infarto agudo do miocárdio ou uma fratura óssea são exemplos paradigmáticos. O ponto crucial para o Direito Previdenciário é que a subitaneidade deve ser aferida em relação à eclosão da incapacidade funcional, e não necessariamente à origem microscópica da patologia. Retomando o exemplo da ruptura tendínea, embora a tendinose seja crônica, a ruptura em si e a perda funcional dela decorrente são eventos de início repentino e manifestação rápida, o que se amolda perfeitamente a este critério.
  • b) Natureza inesperada: Este critério introduz um elemento de subjetividade e imprevisibilidade que é central para a noção de “acidente”. A natureza inesperada deve ser compreendida sob a ótica do segurado, do “homem médio”. Mesmo que, do ponto de vista médico-científico, uma complicação fosse estatisticamente provável ou fisiopatologicamente previsível (como a ruptura de um tendão degenerado), para o indivíduo que vivencia o infortúnio, o evento é fortuito e imprevisto. A proteção previdenciária visa cobrir o risco social, o infortúnio que quebra a normalidade da vida e do trabalho. Exigir que o evento seja “inesperado” até mesmo para um especialista seria esvaziar o conceito, pois muitas condições de saúde possuem fatores de risco e mecanismos de lesão bem estabelecidos. A surpresa e a imprevisibilidade relevantes são as do segurado.
  • c) Impacto na saúde com repercussão funcional: Todo acidente, por definição, gera um impacto na saúde, uma alteração do estado de normalidade fisiológica. Contudo, para fins de concessão do auxílio-acidente, este impacto deve ser qualificado. Não basta a ocorrência de uma lesão; é imperativo que, após a consolidação desta, remanesça uma sequela permanente que implique redução da capacidade para a atividade laboral habitual. Como bem leciona Fábio Zambitte Ibrahim, o benefício não indeniza a lesão em si, mas sim a “perda de ganho futura” decorrente da sequela7. Portanto, a análise jurídica do “impacto na saúde” transcende o diagnóstico médico da lesão aguda (o CID da doença) e foca na consequência funcional e laboral permanente (a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – CIF), que é o verdadeiro objeto da proteção do art. 86 da lei de benefícios.

Ao dissecar essas características, fica evidente que o critério de “evento súbito”, embora aparentemente simples, exige uma interpretação teleológica, alinhada à finalidade da norma previdenciária. O foco deve recair sobre a ocorrência de um infortúnio pontual, inesperado para o segurado, que resulta em uma perda funcional consolidada. Tendo analisado o pilar temporal, passaremos agora à análise do pilar causal: a “origem traumática”.

Leia o artigo na íntegra.

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1 MARTINEZ, Wladimir Novaes. Comentários à Lei Básica da Previdência Social: Tomo II: Plano de Benefícios. 10. ed. São Paulo: LTr, 2017. p. 451.

2 FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 12. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2021. p. 135

3 DICIONÁRIO PRIBERAM DA LÍNGUA PORTUGUESA. Verbete “súbito”. [s.l.]: Priberam Informática, S.A., 2024. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/s%C3%BAbito .Acesso em: 15/7/2025.

4 MEDLINEPLUS. Medical Encyclopedia: Acute. Bethesda (MD): National Library of Medicine (US), 2024. Disponível em: https://medlineplus.gov/ency/article/002215.htm . Acesso em: 15/7/2025.

5 TADI, Prasanna; LUI, Franklin. Acute Stroke (Cerebrovascular Accident). In: StatPearls . Treasure Island (FL): StatPearls Publishing, 2024 Jan. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK535369/ Acesso em: 15/7/2025.

6 AZAR, Frederick M.; MURPHY, G. Andrew. Distúrbios do Tendão de Aquiles. In: AZAR, Frederick M.; BEATY, James H.; CANALE, S. Terry (Ed.). Campbell Ortopedia Operatória. 14. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2022. v. 4, p. 4698. Nesta obra canônica, os autores explicam que “a ruptura do tendão de Aquiles quase sempre ocorre através de uma área de tendinose preexistente” e que a lesão aguda é o resultado de um estresse de tração em um tendão que já está enfraquecido por alterações degenerativas.

7 IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 25. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2020. p. 658. Ao comentar o auxílio-acidente, o autor esclarece: “Não é a lesão que enseja o benefício, mas a sequela dela decorrente, ou seja, o resultado da lesão após a consolidação, capaz de reduzir a capacidade para o trabalho.”

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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