A cor, que faz da moda um dos setores mais sedutores, é também uma de suas faces mais tóxicas e poluentes. Todos os anos, mais de 800 mil toneladas de corantes circulam no mundo para tingir cerca de 90% das roupas produzidas, quase sempre com produtos sintéticos derivados do petróleo.
Só o famoso índigo sintético, base do jeans, contém formaldeído, anilina e até cianeto de hidrogênio — compostos que, em qualquer outro contexto, seriam cuidadosamente controlados ou evitados.
O formaldeído, por exemplo, é usado como conservante em resinas, plásticos e até na indústria de móveis, mas é classificado como potencialmente cancerígeno pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pode causar irritações na pele, nos olhos e no sistema respiratório.
A anilina, além de base para corantes, também é empregada na fabricação de borrachas e espumas sintéticas, mas seu contato prolongado pode afetar o fígado, os rins e o sistema nervoso central.
Já o cianeto de hidrogênio, que pode ser liberado em alguns processos químicos industriais, é extremamente tóxico: em doses altas, interfere na respiração celular, podendo causar intoxicações graves.
Apesar disso, no caso dos corantes para tecidos, esses resíduos permanecem em pequenas quantidades na fibra têxtil e, ao entrarem em contato com o suor e o atrito da pele, podem desencadear alergias, irritações ou reações de sensibilidade em pessoas mais vulneráveis — como trabalhadores da cadeia têxtil e consumidores finais.
Uma química parada no tempo
Segundo especialistas ouvidos pela Eco Age — agência de consultoria, conteúdo e comunicação fundada no Reino Unido, especializada em sustentabilidade, responsabilidade social e inovação ambiental para a indústria da moda, do design e da cultura pop — a química por trás das cores na moda não mudou desde o século XIX.
Mesmo com toda a tecnologia disponível, o setor têxtil segue dependente dos mesmos corantes tóxicos, metais pesados e pigmentos minerais criados no início da Revolução Industrial — uma herança que moldou tendências, lucros e uma conta ambiental difícil de pagar.
Água, energia e rios contaminados
O setor têxtil é um dos maiores consumidores de produtos químicos no mundo, responsável por cerca de um quarto de toda a produção química global. Só os corantes respondem por um terço do impacto ambiental da fase inicial de produção.
Para se ter uma ideia do impacto, tingir apenas 1 quilo de tecido de algodão — o equivalente a uma camiseta ou uma calça leve — pode consumir de 70 a 150 litros de água, dependendo do tipo de corante e do processo usado.
Em grande escala, o volume impressiona ainda mais: para produzir uma tonelada de tecido (o que abastece parte de uma linha de produção de confecção), podem ser necessários até 200 mil litros de água, o equivalente ao que uma pessoa consome em casa ao longo de quase dois anos.
Depois de usado nos tanques de tingimento, esse volume de água carrega resíduos químicos: metais pesados, sobras de corantes sintéticos, solventes e microfibras. Sem tratamento adequado, essa água contaminada acaba devolvida a rios, poluindo solos, fauna e comunidades que dependem desses recursos.
De acordo com o Banco Mundial, a indústria têxtil responde por 20% da poluição industrial de água no mundo. E grande parte disso vem do tingimento: 200 mil toneladas de corantes sintéticos se perdem por ano na forma de efluentes. Mesmo depois do tratamento, 90% dos corantes descartados permanecem quimicamente ativos, afetando rios, fauna e saúde humana.
Além da água, o tingimento consome muita energia térmica para aquecer banhos de corantes e secar tecidos, representando de 15% a 20% do gasto energético do setor — e cerca de 3% das emissões de CO2 ligadas à moda.
Um legado da Revolução Industrial
Antes da industrialização, a cor era um luxo: tecidos eram tingidos com pigmentos naturais como índigo, rubia ou cochonilha, obtidos de plantas ou insetos, num processo artesanal, demorado e caro — restrito à aristocracia.
Isso mudou em 1856, quando o químico britânico William Perkin sintetizou a mauveína, o primeiro corante anilínico, dando origem à indústria de corantes sintéticos, baseados em alcatrão de hulha, carvão e, depois, petróleo.
Com a mecanização, o tingimento passou de oficinas para fábricas. A cor sintética barateou a moda colorida, popularizando tons antes restritos aos ricos. Mas também trouxe poluição química, rios tingidos, doenças ocupacionais e resíduos que, desde então, impactam solos e águas.
Das leis suntuárias à moda de massa
No período anterior à Revolução Industrial, o acesso à cor e à riqueza dos tecidos era rigidamente controlado por códigos e leis suntuárias — normas que existiam desde a Antiguidade, mas se consolidaram principalmente na Idade Média e no início da modernidade europeia. Essas regras determinavam quem podia vestir determinadas cores, tecidos ou adornos, reforçando fronteiras sociais e o poder de elites.
Vermelhos vivos, púrpuras e azuis intensos, por exemplo, eram privilégio da nobreza e da alta burguesia, pois dependiam de corantes raros e caros, como a cochonilha e o índigo, que exigiam rotas comerciais globais e processos de tingimento artesanais e demorados.
Na Roma Antiga, a célebre púrpura de Tiro, cor símbolo do poder imperial, só podia ser usada por senadores, magistrados e o imperador — e o uso indevido podia render punições severas.
No Egito faraônico e na Pérsia, cores, joias e tecidos como o linho fino ou a seda importada também eram controlados por decretos reais ou códigos religiosos, ainda que nem sempre sistematizados como as leis suntuárias europeias.
O termo “leis suntuárias” se consolidou de fato na Europa medieval e moderna, quando cidades-estado como Veneza e Florença, além de reis e parlamentos, passaram a registrar formalmente normas para conter gastos de luxo, garantir distinções visuais entre classes e manter a ordem social.
Essas regras não apenas separavam visualmente ricos e pobres, mas também simbolizavam um sistema de privilégio e ostentação, em que a cor era um poderoso marcador de status.
Esse monopólio, no entanto, começou a ruir com o avanço da mecanização e a descoberta dos corantes sintéticos. Tecidos coloridos tornaram-se muito mais baratos, a produção se expandiu e a moda passou a ser cada vez mais acessível às camadas populares.
Essa democratização da cor, celebrada como sinal de progresso e liberdade estética, também abriu espaço para o consumo em massa — e, com ele, para um modelo de produção que transformou a cor de símbolo de distinção em mercadoria abundante, hoje dependente de insumos químicos poluentes.
Pau-brasil: a cor que abriu caminho para a exploração
Muito antes dos corantes sintéticos transformarem a moda em mercadoria de massa, o pau-brasil foi a primeira grande matéria-prima explorada em larga escala pelos invasores portugueses na costa do que hoje é o Brasil.
Valioso pela brasilina, pigmento vermelho extraído da madeira, o pau-brasil era largamente usado na Europa para tingir tecidos e fabricar tintas, garantindo cores intensas, especialmente tons de vermelho carmim — símbolo de luxo e status na época.
Do século XVI em diante, o pau-brasil abasteceu tinturarias europeias e ajudou a sustentar o mercado de tecidos coloridos muito antes da Revolução Industrial, mas às custas de um ciclo de extração predatória que levou a espécie quase à extinção em várias regiões.
Essa exploração inaugurou um modelo que se repetiria nas décadas seguintes: transformar recursos naturais em pigmento e, mais tarde, substituir tintas de origem vegetal por derivados químicos produzidos em escala — trocando a floresta por fábricas, mas mantendo intacta a lógica de exploração.
Algodão, poliéster e jeans: cada fibra, um impacto
Cada tipo de fibra exige processos específicos: o algodão é o maior consumidor de água. O poliéster, fibra sintética, depende de tintura por dispersão, feita em altas temperaturas e com solventes. Já o denim, base do jeans, passa por banhos repetidos de índigo com agentes redutores — liberando sulfetos e metais pesados.
Estudos apontam que o setor ainda usa mais de 8 mil produtos químicos para colorir tecidos. São 1,7 milhão de toneladas de insumos químicos por ano só para tingimento. Em Bangladesh, uma única fábrica pode usar 1.500 litros de água para produzir uma única camiseta.
Tecnologias limpas ainda engatinham
Há sinais de mudança. Marcas de slow fashion voltam a usar corantes naturais, embora ainda em escala limitada. Tecnologias como tingimento a seco com CO2 supercrítico, impressão digital ou pigmentos bioinspirados — que imitam cores estruturais de asas de borboletas e penas de pavões — surgem como alternativas mais limpas.
Selos como ZDHC ou Bluesign orientam fábricas a reduzir substâncias perigosas. Modelos de tingimento em circuito fechado, que reutilizam água e recuperam sais e corantes, avançam em algumas cadeias produtivas.
Soluções do Brasil
No Brasil, iniciativas para reduzir o impacto do tingimento na indústria da moda ainda caminham em escala limitada, mas já apontam caminhos promissores que combinam tecnologia, pesquisa acadêmica e moda autoral.
Marcas de slow fashion como a estilista Flávia Aranha, em São Paulo, e o Ateliê Mattricaria, de Maibe Maroccolo, em Brasília, têm apostado em corantes naturais extraídos de plantas — como cascas, raízes e folhas — e difundem técnicas de tingimento artesanal em oficinas e cursos.
Já marcas como a Bambusa, especializada em moda íntima orgânica, exploram pigmentos como açafrão, jenipapo e espinafre, reforçando o uso de insumos locais e biodegradáveis.
No setor industrial, algumas empresas buscam tecnologias de impressão digital com tintas à base de água, como faz a Digitale Têxtil, de São Paulo, que reduz o consumo hídrico e o volume de resíduos químicos despejados.
Além disso, centros como SESI/SENAI debatem novas técnicas, como o uso de plasma e o desenvolvimento de corantes vegetais a partir de mais de 400 espécies, em sinergia com a biodiversidade brasileira.
Na pesquisa acadêmica, universidades avançam em soluções que podem chegar à indústria. Um exemplo é o trabalho da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que estuda o uso de líquidos iônicos próticos — solventes potencialmente biodegradáveis — para tingir fibras naturais e sintéticas com menor consumo de água e menos aditivos.
Já a Fitec Ambiental investiga pigmentos naturais como urucum, açafrão-da-terra (turmérico) e casca de cebola, que podem gerar cores vibrantes sem a carga tóxica de corantes sintéticos.
Mesmo tecnologias de ponta, como o tingimento a seco com CO2 supercrítico, começam a ganhar espaço em linhas de pesquisa de universidades como a Unicamp.
Na mesma linha, o biodesign e a biomimética, que buscam inspiração em cores estruturais encontradas na natureza — como asas de borboletas e penas de pavões —, começam a ser estudados como possíveis alternativas para criar pigmentos menos agressivos ao meio ambiente.
Hoje, essas soluções ainda se concentram em pequenas marcas autorais, ateliês artesanais e laboratórios universitários, mas apontam uma rota de transição para uma indústria têxtil mais limpa e conectada à biodiversidade brasileira. Para especialistas, o desafio agora é transformar projetos-piloto em processos viáveis em larga escala, garantindo apoio, investimento e incentivo para que o Brasil também lidere a virada verde na cor da moda.
Desafio da escala
Apesar dos esforços, a maioria das marcas ainda resiste a mudar. O motivo é simples: corantes sintéticos são baratos, previsíveis e fáceis de aplicar em escala industrial — tudo o que o fast fashion quer.
Para quem defende alternativas, o desafio é derrubar um modelo criado há mais de 150 anos, quando a cor deixou de ser um luxo artesanal para se tornar mercadoria tóxica de massa.
Apesar de avançarem em oficinas, ateliês e laboratórios, essas soluções ainda enfrentam um grande obstáculo: escala industrial. Para que tecnologias como tingimento natural, impressão digital com baixo consumo de água, CO2 supercrítico ou pigmentos bioinspirados façam diferença real, é preciso romper a barreira entre pesquisa e produção em massa.
Sem apoio técnico, incentivo fiscal, investimento em parques fabris e redes de fornecedores alinhados, a moda corre o risco de ficar presa à lógica de sempre: cor abundante, sintética e barata — mas cara para o meio ambiente. A oportunidade existe. Falta transformar boas ideias em padrão de mercado.
Comunicar erro Encontrou um erro na matéria? Ajude-nos a melhorar