O novo capítulo da série documental Desastre Total (Trainwreck), da Netflix, mergulha no colapso de uma das marcas mais polêmicas da moda americana: American Apparel. Em Desastre Total A Seita da American Apparel, vemos no centro do furacão Dov Charney.
Ele é o excêntrico fundador da empresa que prometia revolucionar a indústria com roupas fabricadas nos Estados Unidos, anúncios provocativos e uma proposta “humanista” — que, com o tempo, revelou-se apenas fachada para uma cultura tóxica, repleta de abusos, exploração e escândalos sexuais.
Dov Charney: o “guru” da moda que virou vilão

Nascido no Canadá em uma família rica, Dov Charney se mudou cedo para os Estados Unidos, onde largou a faculdade para abrir sua primeira empresa de roupas. Em 1990, fundou a American Apparel, com apoio financeiro dos pais. A proposta era ousada: fabricar roupas 100% feitas em solo americano, com foco em design minimalista e um apelo jovem, alternativo e sensual.
Com um discurso anti-imigração e antiexploração de mão de obra barata no exterior, Dov posicionava sua empresa como uma alternativa ética às gigantes do fast fashion. E funcionou: nos anos 2000, a marca explodiu em popularidade, especialmente entre jovens de 20 a 30 anos. A estética sem logos, com cores sólidas e cortes justos, virou sinônimo de estilo urbano. Em 2006, a empresa abriu capital e chegou a operar em 11 países.
Mas, por trás da imagem “cool” e engajada, escondia-se uma cultura empresarial nociva.
O “culto” da American Apparel: bastidores de um império disfuncional
Desastre Total: A Seita da American Apparel não exagera ao nomear o episódio dessa forma. A empresa realmente funcionava como uma seita. A começar pelas contratações — muitos funcionários foram contratados informalmente, sem experiência, e até mesmo após serem pegos furtando nas lojas. Charney acreditava em dar “segundas chances”, mas também em manipular, controlar e desestabilizar seus funcionários.
Reuniões semanais por telefone serviam para constranger publicamente quem não batia metas. Os funcionários viviam sob ameaça de demissão e eram incentivados a competir entre si. Dov dizia seguir os ensinamentos do livro As 48 Leis do Poder, tratando a equipe como “gado”, segundo relatos.
Além disso, ele invadia a vida pessoal dos funcionários, ligando em horários absurdos e exigindo compromissos fora do expediente. A cultura era opressora e instável, sustentada por cláusulas de contrato que proibiam os trabalhadores de processar a empresa ou criticar Dov publicamente, o que ajudou a blindá-lo por anos.
O colapso financeiro e os escândalos sexuais
Mesmo no auge, a empresa sofria com problemas financeiros. Produzir nos EUA era muito mais caro, e Charney se recusava a terceirizar. Quando a crise de 2008 atingiu a economia global, a American Apparel já estava enfraquecida — e, sem adaptação, o império começou a ruir.
Paralelamente, vinham à tona denúncias cada vez mais graves de assédio sexual e abuso. Charney era conhecido por se envolver com funcionárias e pressioná-las para relações íntimas, inclusive sob ameaça de demissão. Ele mantinha um grupo de mulheres, chamadas informalmente de “Dov Girls”, que frequentavam seu escritório e casa. Vídeos comprometendo o empresário — como um em que ele aparece nu com funcionárias — foram encontrados em seu computador.
Apesar das evidências, ele nunca foi acusado formalmente. Os contratos com cláusulas abusivas o protegiam judicialmente. No entanto, a pressão da opinião pública e dos investidores levou ao seu afastamento da empresa em 2014. Nove meses depois, a American Apparel decretava falência.
O que aconteceu com Dov Charney?


Após ser demitido, Dov tentou voltar ao mercado com a Los Angeles Apparel, mas a empresa não teve o mesmo impacto — nem comercial, nem cultural. De acordo com o documentário da Netflix, ele agora trabalha com outra figura controversa da indústria: Kanye West, na grife Yeezy. Dois nomes que, não por acaso, compartilham uma reputação problemática no meio artístico e empresarial.
Um império feito à base de imagem e abuso
A história da American Apparel é, ao mesmo tempo, um retrato do sucesso fácil na era da estética e um alerta sobre os perigos de líderes carismáticos que escondem práticas abusivas atrás de discursos modernos. Dov Charney vendeu uma imagem de rebeldia, ética e liberdade. Mas por trás das câmeras, o que existia era um ambiente sufocante, misógino e exploratório.
A Seita da American Apparel, episódio da série Desastre Total na Netflix, não apenas revela os bastidores desse colapso empresarial, como também serve como lição amarga sobre o que acontece quando a imagem fala mais alto que a integridade. E mostra, sobretudo, como por trás de muitas marcas “diferentonas” podem se esconder os mesmos vícios corporativos de sempre — ou até piores.