Para quem tem doença celíaca, a atenção aos detalhes é constante. E uma das dúvidas mais frequentes entre os pacientes é: beijar alguém que comeu glúten pode ser perigoso? A preocupação gira em torno da contaminação cruzada — isto é, da possibilidade de resíduos da proteína passarem da boca de quem consumiu glúten para o celíaco.
Um novo estudo apresentado este mês na Digestive Disease Week, nos Estados Unidos, trouxe respostas importantes. A pesquisa foi conduzida pela nutricionista Anne Lee, da Universidade de Columbia (Nova York), e reacendeu o debate sobre os cuidados necessários em relacionamentos com pessoas celíacas.
Estudo aponta que o risco pode ser menor do que se pensava
De acordo com o médico e membro da Sociedade Internacional para o Estudo da Doença Celíaca Fernando Valério, a pesquisa envolveu 20 casais e analisou a possível contaminação por meio do beijo após o consumo de alimentos com glúten. Os resultados foram animadores: a simples higienização da boca com um copo de água antes do beijo pareceu ser suficiente para evitar riscos significativos.
“Esse estudo mostrou que talvez esse risco seja muito menor e facilmente controlável”, explica Valério. “Bastaria a pessoa que ingeriu glúten enxaguar a boca com água antes do beijo. Mas, logicamente, ainda precisamos aprofundar esses estudos, com mais pessoas, diferentes alimentos e contextos”, afirma.
Hipervigilância sem base científica pode ser prejudicial
Valério também chama atenção para os impactos emocionais causados por regras excessivas e não embasadas na ciência.
“Durante muitos anos, vi pacientes com um comportamento hipervigilante e exagerado em relação a essa questão, mesmo sem termos estudos sobre o tema. Sempre orientei meus pacientes a manterem calma e bom senso. Mas ouvi muitas ‘regras’ inventadas, sem justificativa científica, que causaram sofrimento emocional a diversas famílias.”
Segundo o médico, algumas pessoas adotaram medidas como esperar três horas entre o consumo de glúten e o beijo, fazer higienizações bucais complexas, evitar contato físico com os filhos após comer glúten e até dormir em quartos separados por causa de uma cerveja.
“Essa já é uma doença punitiva, que afeta relações e o cotidiano familiar. Criar regras sem respaldo científico pode ser uma crueldade, com repercussões afetivas severas. Ainda há perguntas sem resposta sobre a doença celíaca. E quando isso acontece, precisamos ter calma. Só a ciência poderá nos dar essas respostas”, afirma.
Sensibilidade individual ainda preocupa
Embora o estudo traga uma perspectiva mais tranquila, nem todos os pacientes se sentem seguros com a ideia. Muitos relatam reações intensas mesmo com quantidades mínimas de glúten, o que torna difícil aplicar os achados de forma universal. Nesse contexto, o bom senso e a escuta individualizada continuam fundamentais no acompanhamento clínico.
O que é a doença celíaca?
A doença celíaca é uma condição autoimune que atinge cerca de 1% da população mundial. No Brasil, estima-se que mais de 2 milhões de pessoas sejam celíacas — mas menos de 20% têm diagnóstico confirmado.
A enfermidade ocorre em indivíduos geneticamente predispostos e é desencadeada pela ingestão do glúten, proteína presente no trigo, centeio e cevada.
O único tratamento eficaz é uma dieta 100% livre de glúten. Os cuidados são rigorosos, e até mesmo traços da substância podem causar reações adversas e inflamações intestinais em pacientes sensíveis.