Em março de 1975, o então presidente Ernesto Geisel foi até Candeias, na baía de Todos-os-Santos, para inaugurar o porto de Aratu.

Ele celebrou a ocasião com o ex-governador Antônio Carlos Magalhães em um coquetel na antiga senzala da fazenda Wanderley Pinho, a pouco mais de 1 km do porto, parte de um museu hoje desativado para restauro.

Na margem oposta da baía, estava a comunidade de Bananeiras, na Ilha de Maré, bairro de Salvador criado pelos escravizados fugidos da mesma senzala.

O período de construção do porto foi a primeira vez em que os quilombolas —ainda sem energia elétrica— viram intensa iluminação artificial à noite.

“Meu pai conta que perguntou ao meu bisavô: ‘O que é aquilo?’”, afirma Marizelha Lopes, marisqueira e líder comunitária de Bananeiras. “Meu bisavô disse: ‘É o fim da vida da gente, a morte do nosso povo’, mesmo sem saber o que era.”

Cinquenta anos depois, ela relata sentir que a previsão foi confirmada.

“Esse modelo que eles chamam de desenvolvimento chegou para acabar com a vida da gente”, afirma. “Conheci meus bisavós todos. Eles morreram com mais de cem anos. Agora, a gente está perdendo crianças na comunidade para o câncer.”

O porto de Aratu, projetado para atender às necessidades da área cada vez mais industrializada do Recôncavo Baiano, transporta ao ano uma média de 13 milhões de toneladas de produtos como fertilizantes, nafta, cobre, petroquímicos e gases, que, segundo pesquisas, têm contaminado a baía de Todos-os-Santos.

As mesmas suspeitas são direcionadas a um empreendimento mais antigo, a refinaria de Mataripe, que já foi chamada de RLAM (refinaria Landulpho Alves). Fundada em 1951, ela fica ao norte da Ilha de Maré, em frente à comunidade de Porto dos Cavalos.

“Tem um peixe chamado tainha. A gente pega, faz a moqueca, e está com gosto de gás. Falamos [à refinaria]: ‘Isso tem a ver com a falta de manutenção de vocês’”, diz Marizelha.

Apesar de cercada pelo maior complexo industrial da Bahia, a população da Ilha de Maré, de cerca de 10 mil pessoas, continua sendo considerada uma comunidade negra rural.

Bairro com maior percentual de pardos e pretos de Salvador (97%, segundo o Censo de 2022), é formado em sua maioria por remanescentes de quilombo que sobrevivem da pesca artesanal, da mariscagem e do turismo.

A ilha só recebeu energia elétrica no final da década de 1980, água encanada no fim da década seguinte e ainda espera pelo saneamento básico.

Segundo lideranças da comunidade, a pesca e a mariscagem, fonte de renda para os moradores, foram afetadas por vazamentos de produtos químicos no mar. Ao problema, se soma o aquecimento das águas do oceano, processo agravado pela crise climática, que diminui a quantidade de mariscos.

A população também queixou-se ao Ministério Público estadual e ao Conselho Nacional de Direitos Humanos de doenças respiratórias, dermatológicas e aumento na incidência de câncer devido ao consumo de pescado que estaria contaminado.

“Eu perdi minha irmã, que tinha 49 anos. Ela morreu vai fazer quatro anos, com câncer de intestino”, diz Marizelha, que atribui a doença da irmã à contaminação química.

“Infelizmente, a gente vive num país que não tem lugar para nós, pretas e pretos”, afirma também. “A sensação é que continuamos vagando, procurando um lugar. Embora saibamos que nosso lugar é esse aqui, porque foi aqui que nos aquilombamos.”

A comunidade pede há cerca de 20 anos um estudo mais abrangente que meça os níveis de metais no mar. A Acelen, administradora da refinaria, entrou em acordo com o Ministério Público Federal para tratar do assunto com os moradores.

Procurada pela Folha, a empresa afirma que ao assumir a refinaria de Mataripe realizou um estudo com a comunidade e mantém diálogo com suas lideranças. A empresa também diz que implementou projetos como o Acelera Pesca, para fortalecer a economia local e melhorar as condições de vida da população.

A Codeba (Companhia Docas do Estado da Bahia), responsável pelo porto de Aratu, também afirma que adota medidas regulares para mitigar impactos ambientais, com monitoramentos e ações preventivas, além de manter diálogo com as comunidades.

Segundo a administradora, recentemente houve só dois casos de suspeita de vazamento e, no final, foi esclarecido que era fuligem. A empresa diz ainda que investe em projetos sociais, como a implantação de uma Estação de Monitoramento Ambiental no porto.

Em Porto dos Cavalos, a marisqueira Elenilse Paraguaçu, 54, contraiu uma alergia depois de se mudar para uma área com poços de petróleo —vendidos pela Petrobras para a Brava Energia em 2022, eles estão desativados e em ruínas.

Como catava os mariscos, Elenilse trabalhava no mangue próximo aos poços. “Veio uma coceira no corpo que durou um ano. Não conseguia dormir”, diz.

A filha de Elenilse, Rafaela, 21, foi uma das crianças que participaram de um levantamento da Ufba (Universidade Federal da Bahia) em 2010 para identificar metais pesados no sangue de crianças de até seis anos. O resultado voltou com alto índice de chumbo, lembra a mãe.

Procurada pela Folha, a Petrobras não respondeu sobre as queixas de contaminação na ilha até o ano de 2021, quando vendeu a refinaria, e até 2022, quando vendeu os poços. A Brava Energia, atual responsável pelos poços, afirma que eles são monitorados constantemente, sem constatação de vazamento.

Uma pesquisa mais recente, conduzida pela professora Mônica Ramos na UFRB (Universidade Federal do Recôncavo Baiano), identificou em caranguejos e no solo dos manguezais uma alta concentração de metais pesados, como cobre, cromo, zinco e níquel, além do permitido pelas normas ambientais e sanitárias.

Segundo Mônica, a pesquisa sugere a contaminação dos moradores da ilha pelo consumo tradicional e frequente do marisco. “A comunidade da Ilha de Maré recebeu somente o ônus dos grandes empreendimentos”, afirma.

A crise climática é outro ônus. A temperatura do mar da baía de Todos-os-Santos subiu, assim como a do solo dos manguezais.

“Se está muito quente, os mariscos, que ficam embaixo da areia, se desenterram. O calor é muito e acabam morrendo, porque são sensíveis à quentura”, diz Adriana da Conceição, 39, enquanto cata siri.

Ela, como a maioria das mulheres da comunidade, passou a mariscar com cerca de dez anos ou quando “se entendeu por gente”. A profissão é passada de mãe para filha há pelo menos quatro gerações.

As marisqueiras de Porto dos Cavalos, reunidas no coletivo Mulheres das Águas, afirmam que já desapareceram alguns dos mariscos que pescavam na infância, como o sarnambi e o rala coco.

“Antigamente, a gente já pegava de três a quatro quilos de marisco em um dia. Hoje, a gente vai pegar um quilo e é um sacrifício”, diz Adriana.

A Prefeitura de Salvador afirma que tem estudado as ilhas de calor na Ilha de Maré e diz atuar na comunidade com obras de infraestrutura e ações de saúde, apesar das reclamações dos moradores de falta de pontes, hospitais e escolas.

O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.

By Daniel Wege

Consultor HAZOP Especializado em IA | 20+ Anos Transformando Riscos em Resultados | Experiência Global: PETROBRAS, SAIPEM e WALMART

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